Com o desaparecimento físico de Mário Soares, seria inevitável que a “descolonização” viesse novamente para a ribalta. Com Melo Antunes (e outros membros do MFA) e com Almeida Santos igualmente desaparecidos, haverá condições para um estudo desapaixonado do processo que desmantelou o Império e proporcionou a emancipação aos povos africanos de dominação portuguesa. Este não é tema particularmente cativante para a minha geração (mesmo a que teve em casa, na família próxima ou no seu círculo social as experiências e as lamentações dos “retornados”). Temos hoje a oportunidade de conhecer a África que fala português num contexto absolutamente diferente. É um contexto de “regresso” e de “cooperação”, já distante das feridas de outrora.
Pelo que ouvi (cá e lá), li e reflecti, acredito que houve um tempo para, no decurso da década de 60 – um período de notável crescimento, evolução e orgulho das “colónias” -, preparar e consolidar um processo de transição – acima de tudo jurídico e institucional – que permitisse acabar com as guerras, garantir a posição dos portugueses brancos e promover uma elite africana. Esse foi um período em que a metrópole exibiu toda uma outra mentalidade na relação com África, dinamizando investimento estratégico e convencendo os portugueses “emigrados” que aquelas terras iriam ser a sua vida. Esse tempo foi o da administração de Marcello Caetano e foi miseravelmente desaproveitado sem remédio. Como se desaproveitou o homem que teria as condições para empreender a tarefa: Adriano Moreira.
Logo a seguir à sublevação de Abril, Soares levou para a pasta dos Negócios Estrangeiros uma convicção: independência pura e simples, como condição de acreditação internacional e migração do país para o desafio europeu. Soares sabia que o 25 de Abril tinha sido uma revolta contra a perpetuação da guerra e não – como lutara – uma revolução política. Esta viria depois e não poderia ser abalada. Certamente prejudicado com a desordem do RREC, reconheceu os movimentos de libertação e foi ultrapassado pelos esquemas desenhados pelo MFA. Compreendeu que a rendição dos militares superava qualquer outro programa político, nomeadamente o federalismo avant la lettre de Spínola. Ouviu quem assegurava que a presença dos brancos em África seria um obstáculo à obtenção do poder pelas populações africanas, pelo que seriam afastados pela força ou pelo medo. Quando deu conta de que já não era tempo de referendos e de gradualismos, antes vigor dos tabuleiros da “guerra fria”, não se imolou na causa das pessoas, dos seus direitos e dos seus bens. Não considerou que essa fosse uma batalha a realizar e optou pela minimização dos danos da “integração”.
A questão não era sim ou não à independência. Não podia ser mais adiada: ponto. Mas independência com “nacionalização” e “expropriação” dos “portugueses colonos” era uma coisa; independência com reconhecimento das suas posições jurídicas e da opção de nacionalidade, celebração de um estatuto jurídico (mesmo que temporário, mas sem outorga de privilégios) e respeito mútuo Estado a Estado seria toda uma outra realidade. É disso que trata o crédito e a indignação dos que voltaram. É isso que a história deve resolver, até para ser justa com Soares: por que não se fez diferente com os portugueses que provaram que o “colonialismo” não era um monstro de sentido único?
Fiz sempre esta pergunta quando vi a minha geração, em Luanda e em Maputo, sem traumas, a recuperar a simbiose com África. A partida de Soares apenas recordou a pergunta de sempre.
Professor de Direito da Universidadede Coimbra. Jurisconsulto.
Escreve à quinta-feira