A atriz Carla Andrino anunciou que tem cancro da mama. Todos os dias, as Carlas recebem a notícia que lhes rouba os planos (e, mais tarde, acabam sempre por não querer saber desses planos para nada). Todos os dias percebemos que o cancro é como aquele puto parvo de 13 anos que é viciado em mamas (por isso é que não as deixa em paz). Todos os dias percebemos que o nosso corpo é frágil e que as nossas certezas são de vidro. Todos os dias deveríamos lembrar-nos que os homens também têm mamas e que também recebem notícias destas.
Quando uma pessoa que nos é familiar (não a conhecemos pessoalmente, mas tem um trabalho que a expõe) comunica que está doente e assume que é humana e vulnerável, fá-lo muitas vezes porque não tem outra hipótese (os media irão saber e descortinar o assunto à maneira deles), mas também o pode fazer por nós. Não sei se é esse o caso ou não, de qualquer forma, agradeço a partilha. Agradeço a generosidade de quem conta ao mundo que o seu mundo rangeu, transformando a sua história individual na oportunidade de outros reverem o seu próprio reflexo.
Não é que precisemos de falar uns pelos outros – também não é isso que pretendo com estas crónicas e com o projeto Cancro com Humor -, mas a partilha conecta-nos e faz-nos entender que somos mais parecidos do que pensávamos e que, bolas, afinal não sou a única a chorar porque agora o meu cabelo está a crescer de novo, espetado e a picar, e sinto-me cada vez mais parecida com um ouriço-cacheiro. Existem mais personagens estranhas como eu e gosto mais de todos por saber isso.
A partilha humaniza-nos. A partilha aproxima-nos. Ver no outro aquilo que eu já fui, que eu já vivi, que eu já quis tranquiliza a nossa própria fragilidade. Ver noutras carecas despontarem cabelos rebeldes, ver outros choros espontâneos e desadequados, ouvir outras gargalhadas extremas e barulhentas descansa-nos a alma. São tantas vezes essas parecenças, esses traços que reconhecemos naquela história, naquele tropeção, que nos permitem aceitar a nossa própria realidade.
Mesmo que todos desejemos a nossa unicidade porque aprendemos a amar as nossas particularidades, e apesar de ansiarmos o destaque nas ideias que defendemos, nos projetos que inventamos, nas roupas e no estilo que mostramos, em alguns momentos da nossa vida só queremos ser iguais. Não queremos ter uma doença rara, não queremos ser donos daquela dificuldade que parece ter sido inventada de propósito para nós, e agradecemos a quem aparece e nos tranquiliza – porque já percorremos esse caminho. Agradecemos a quem se vulnerabiliza, a quem se expõe, a quem assume a liderança e leva a bandeira na mão no desfile, porque é sempre preciso alguém ir à frente.
Bem sei que esta exposição é criticada por muitos. Discute-se o porquê de algumas pessoas terem a necessidade de contar que estão doentes. O que procuram com isso, o que tentam promover, perguntam, por aí, nos corredores. Pertence a cada um o motivo das suas reações mas, para mim, num país cada vez mais hipócrita e ilusoriamente social, onde os abraços são likes e as visitas são visualizações, são estes que se mostram, que contam e que desenterram a cabeça da areia que acabam por nos unir. Nem que seja durante aqueles segundos em que fomos lá escrever no Facebook o quanto desejamos que tudo corra pelo melhor.
Pois é, expõe-se. Mas a exposição pode matar a solidão de alguém – porque foi nesse mesmo dia em que ela partilhou a sua história, nesse mesmo mês, nesse mesmo ano, que uma outra Carla tocou na mama e soube-a doente. Foi nesse mesmo dia que uma outra Carla se conheceu mais forte.
Agradeço a generosidade de quem conta ao mundo que o seu mundo rangeu.
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