Mário Soares nasceu num segundo andar de uma casa na rua Gomes Freire, em Lisboa, filho de um padre pecador, João Lopes Soares, e de Elisa Nobre, que era casada quando conheceu o republicano de porte distinto. Tanto João Lopes Soares como Elisa já tinham filhos quando se conheceram. Elisa era natural da aldeia de Pernes, concelho de Santarém, mas tinha aberto uma pensão em Lisboa. Os pais de Elisa eram agricultores. João Lopes Soares, da aldeia de Arrabal, Leiria, também tinha origens modestas.
Apesar da sua nula vocação para a abstinência sexual, João Lopes Soares ordena-se padre em 1900, depois de ter feito o curso de Teologia na Universidade de Coimbra. É um republicano convicto e ocupa vários cargos depois da implantação da República: é governador civil da Guarda (entre 1912 e 1913), a seguir de Braga e depois de Santarém. É deputado durante 10 anos, entre 1916 e 1926, ano em que triunfa o golpe militar que dá origem à ditadura. Antes, em 1919, tinha sido ministro das Colónias.
Depois do 28 de maio de 1926, é preso várias vezes. Antes de Mário Soares nascer, João Lopes Soares já tinha tido dois filhos: Rogério Lopes Soares, de mãe desconhecida e de quem nada se sabe, e Tertuliano Lopes Soares (nascido em 1906 e que morreu quando Soares já era Presidente).
Mário Alberto Nobre Lopes Soares nasce a 7 de dezembro de 1924. Em Agosto de 1930, tinha Soares cinco anos, o pai é deportado pela Polícia política para os Açores.
A relação de João Soares com Elisa só dará em casamento a 5 de setembro de 1934, já Mário Soares tem quase 10 anos. O casamento fez-se na 7.ª conservatória do Registo Civil, com João Lopes Soares já desobrigado das insígnias de padre. A situação do marido ex-padre e da mulher divorciada impediam um casamento católico. No entanto, até ao fim da vida, João Lopes Soares manteve intacta a sua fé católica. Aliás, Mário Soares foi baptizado, tendo como madrinha Nossa Senhora – nasceu a 7 de dezembro, véspera do dia da Imaculada Conceição. Mas, apesar das instâncias do pai, que o queria educar catolicamente, Mário Soares recusou. Tinha 12, 13 anos quando o pai insiste com o filho para frequentar a catequese. Resistiu. Não casou pela igreja nem batizou os seus filhos, Isabel e João.
João Lopes Soares entra em várias conspirações contra o regime fundado em 1926. É preso e exilado nos Açores. Funda o Colégio Moderno em 1936, por influência da mulher – segundo recordou o próprio Mário Soares em entrevista ao i. A fundação do Colégio, em 1936, coincide com o início de alguma estabilidade financeira na vida da família Soares. Até aí, as coisas não eram fáceis. Com o pai João Soares várias vezes preso, o dinheiro era escasso. Soares chega a viver um ano nas Caldas da Rainha, na casa da família Maldonado Freitas – o patriarca da família oposicionista era grande amigo do pai Soares. A sua ligação à cidade e à Foz do Arelho, onde passa as férias de verão na juventude, será imensa.
O colégio era para o sexo masculino, com internato e semi-internato. Ensina a instrução primária, o curso liceal e complementar dos liceus. Terá também uma secção infantil, aberto aos dois sexos.
A vida começa a melhorar. A partir de 1936, a família instala-se no Colégio, que continua hoje em funcionamento no Campo Grande. O nome da rua é que mudou: chamava-se rua de Malpique a rua que tem hoje o nome do fundador do colégio: rua João Soares. O pai gere a educação, a mãe o internato.
Soares sempre recordou, em todas as entrevistas, uma infância muito feliz, com uma relação profunda com a mãe – que o mimou bastante e compensava as ausências do pai. Embora o pai João Soares tenha sido o centro da família (morreu aos 91 anos, em 1970, quando Soares estava em Itália a escrever o Portugal Amordaçado), a mãe Elisa marcou profundamente o filho. Morreu bastante mais nova, com 67 anos. No livro de Maria João Avillez (Soares, Ditadura e Revolução), Mário Soares admitiu que a mãe podia ter um feitio mais difícil do que o pai, mas mais parecido com o dele: «A minha mãe esteve sempre muito presente na minha vida, foi um grande e terno apoio para mim, quase único, durante parte da minha infância, quando o meu pai estava ausente, por estar preso ou na clandestinidade. A Maria de Jesus nunca teve relações fáceis com a minha mãe: sempre gostou muito mais do meu pai. A minha mulher tem um tipo de sensibilidade que não se casava com o falar franco, às vezes desabrido, da minha mãe, que em parte herdei. Dizia o que lhe vinha à cabeça, com o coração ao pé da boca, era muito direta».
O camarada Fontes
Mário Soares entrou para o PCP em 1943, aos 19 anos, quando era estudante na Faculdade de Letras. O seu pseudónimo era o «Fontes», por uma razão completamente prosaica. Relato do próprio, no livro de Maria João Avillez: «Um dia houve uma reunião numa casa da Avenida Fontes Pereira de Melo, onde estavam o Otávio Pato, o José Gilberto de Oliveira, e eu próprio, os três principais dirigentes do movimento comunista juvenil dessa época. Era preciso inventar pseudónimos, por causa da polícia. E assim escolhemos: eu seria ‘o Fontes’, o Gilberto ‘o Pereira’ e o Octávio ‘o Melo’».
Já é militante comunista quando adere ao MUD juvenil, um movimento de oposicionistas formado no pós-guerra. Soares mantém-se militante do PCP até 1950. Em entrevista ao i, afirma que o PCP o obrigou a ir para a clandestinidade e ele recusou, por não suportar uma vida de clandestinidade. A versão oficial do PCP é que foi expulso por «ter abdicado da luta».
No seu tempo de militância comunista, Soares vive um episódio que ajudará a acabar com a sua relação com o PCP. Na candidatura presidencial de Norton de Matos, em 1949, Soares trabalhará muito de perto com o general. Apesar de ser ainda muito jovem, é membro da Comissão dos Serviços Centrais da Candidatura, ao lado de Mário de Azevedo Gomes, Tito de Morais, Jacinto Simões e outros.
Norton de Matos já tinha 80 anos na altura em que se decidiu candidatar (Soares fará o mesmo quando se recandidata à Presidência da República em 2006 com a mesma idade) e passava as manhãs na cama, a ler os jornais. Soares despachava a agenda diretamente no quarto do general. As coisas correm bem até o PCP decidir obrigar Soares a confessar a Norton de Matos – que era anticomunista quanto baste – a sua militância no partido. Soares resistiu o mais que pôde às ordens. Sabia que a fúria do general seria incontrolável. E foi. Depois de saber que Soares «se preparava para ingressar no PCP» (foi esta a fórmula que o jovem oposicionista encontrou para cumprir as ordens do partido), Norton de Matos quis afastá-lo totalmente de qualquer cargo na campanha. Por causa da interferência de Azevedo Gomes, acabou por aceder a mantê-lo na estrutura, com a condição de nunca mais ter que se cruzar com ele. Proibiu-o de ir ao comício do Porto.
Por essa altura, Soares já tinha sido preso várias vezes. A sexta prisão, aos 24 anos, aconteceu no dia seguinte à reeleição do marechal Carmona como Presidente da República. A PIDE fez um raid e prendeu no mesmo dia Salgado Zenha, também militante do PCP, Manuel Tito de Morais (fundador do PS, que nunca foi comunista, mas estava na campanha de Norton de Matos), Manuel João da Palma Carlos (o primeiro chefe de Governo provisório a seguir ao 25 de abril), os escritores Manuel Mendes e Gustavo Soromenho, entre muitos outros. Soares é preso a 13 de fevereiro. Nove dias depois casa, por procuração, com Maria de Jesus Barroso. O padrinho foi o escritor Manuel Mendes, grande amigo de Soares, que também estava preso. A situação da família era difícil: Maria Barroso, atriz, tinha sido expulsa do Teatro Nacional por razões políticas e estava grávida de João Soares, que viria a nascer seis meses depois, em agosto de 1949.
Advogado, finalmente
A família vive nas instalações do Colégio Moderno. Soares era licenciado em História (Ciências Histórico-Filosóficas, como se dizia na época), mas estava proibido de dar aulas. O pai ainda o convence a ser uma espécie de administrador do colégio (que explorava uma quinta de onde vinham os víveres para a alimentação dos estudantes), mas decididamente aquela não era a praia de Soares.
Decide-se a tirar o curso de Direito, como estudante voluntário, convencido de que lhe poderá dar uma maior independência profissional e face ao poder político. Marcello Caetano é seu professor e estabelecem uma boa relação: «Eu era aluno voluntário, não frequentava as aulas, limitava-me a ler as sebentas. Mas um dia, por curiosidade, fui: achei-o um expositor claro, límpido, a sua sebenta – que aliás era um livro, nisso diferente dos outros – era objetiva e bem feita. Deu-me Direito Constitucional e Ciência Política e também, no primeiro ano, História do Direito Português. Como eu tinha alguns conhecimentos de história, entreguei-lhe um trabalho que ele pedira e que fiz com grande facilidade. Então, chamou-me, falou comigo. Sabia tudo a meu respeito, achei-o interessante, nunca ninguém me tratara tão simpaticamente na universidade. Marcello interessava-se pelos alunos, lia os pontos, o que nem todos faziam. (…) Como professor guardo de Marcello a melhor das recordações».
Quando é publicado em França o Portugal Amordaçado, em abril de 1972, Mário Soares envia do exílio um exemplar a Marcelo Caetano. Porquê? «Porque tinha sido meu professor».
Depois de se licenciar em Direito, vai trabalhar para um escritório na rua do Ouro, 87, 2.º andar com o advogado Leopoldo Vale. Como contou a Maria João Avillez: «No escritório, havia outros dois advogados, os meus amigos Gustavo Soromenho e Pimentel Saraiva. Comecei logo a ter clientes, a ganhar algum dinheiro». Mais tarde, Vasco da Gama Fernandes junta-se ao escritório. Zenha, «um jurista excecional», sempre foi um grande apoio: a amizade era tão forte que Soares convidou Salgado Zenha para padrinho (civil) da sua filha Isabel, atual diretora do Colégio Moderno, nascida em 1951, dois anos depois do irmão.
Rapidamente, o escritório da rua do Ouro torna-se um lugar de visita obrigatória para todos os jornalistas estrangeiros de visita a Portugal. É lá que decorre a primeira reunião em Lisboa da Associação Socialista Portuguesa (a organização que antecedeu o PS), fundada em Genebra em 1964 por Soares, Manuel Tito de Morais e Francisco Ramos da Costa.
Na entrevista que deu a Avillez, publicada em livro em 1996, Soares relata como eram esses dias de advogado e oposicionista: «Naquele tempo, a vida fazia-se muito na Baixa, centro nevrálgico de Lisboa. A rua do Ouro era uma das suas artérias principais. Vinha para o escritório tarde, ao fim da manhã, quase sempre de metropolitano, que então chegava só aos Restauradores e, depois, descia vagarosamente até ao meu escritório, parando a falar com uns e com outros, entrando nos cafés, indo à Havaneza do Rossio, em busca dos jornais estrangeiros, conspirando e dizendo mal do governo, no passeio do ‘reviralho’ [expressão utilizada durante o Estado Novo para designar os oposicionistas] em frente ao Nicola».
A noite era diferente: «Às sete horas começavam a aparecer os amigos e os políticos (…). Era sempre o último a sair. Muito depois dos meus colegas, com horários e hábitos mais regrados. Pelas nove horas, o Manuel Mendes assobiava da rua, com frequência. A essa hora a Baixa começava a estar deserta. Ele perguntava, com as mãos a fazer de megafone: ‘Mário, queres vir jantar a uma taberninha’. E eu normalmente queria. Juntavam-se outros amigos, geralmente no “Porto de Abrigo”, em infindáveis discussões político-literárias, numa espécie de boémia mansa. Foram assim os meus anos de escritório na rua do Ouro: anos felizes e fecundos, apesar das perseguições da PIDE, que lhe deram um colorido especial».