Se Álvaro de Campos possuísse ainda nervura, ele que, engenheiro naval, sabia bem do reforço necessário para a uma peça mecânica lhe aumentar a resistência, e por maleita desta terra despejada ao mar e de tudo, não houvesse já partido, passava cafés a matutar como é que os nada continuavam a ser tudo.
Porque uns já nascem escravos, menos que escravos, menos que nada. Sombras das solas das sandálias de escravos. Num mundo rendido a imbecis, loucos e burlões. Este é o tempo dos assassinos e de Deus.
Nunca a cloaca pariu tanto inteligente pulha, tanta média sem classe, tanto .
Pela primeira vez na história desde o princípio, os estúpidos superam-nos. Este é o seu império, façamos um adequado voto de silêncio.
Um tempo em que a verdade já não precisa de o ser, a ignorância tem estatuto. O que falta é ser filho da mãe, e do pai, de muitos pais é melhor. Em que a rede só traz excremento de sub-homem.
O poema “Ultimatum” de Álvaro de Campos, publicado em 1917 no único número de “Portugal Futurista”, imediatamente apreendido pela polícia a bem dos costumes, da ordem e para tranquilidade de cidadãos preocupados com os termos e vírgulas tresloucadas que tratavam de denunciar com esmero e caligrafia disciplinada, em epístola fascista.
Neste mundo do avesso, numa Europa à deriva, e uma cidadania de presságio, é extraordinário descobrir como a poética do engenheiro nos agarra 100 anos depois. São excertos do extenso poema que vale a pena redescobrir.
ULTIMATUM
Mandato de despejo aos mandarins do mundo
Fora tu,
Reles snobe plebeu
E fora tu, imperialista das sucatas
Arranjista da intelectualidade inesperada
Charlatão da sinceridade
E tu, da juba socialista, e tu, qualquer outro
Ultimatum a todos eles
E a todos que sejam como eles
Todos!
Monte de tijolos com pretensões a casa
Inútil luxo, megalomania triunfante.
Cristianismo para uso de prestidigitadores!
E tu, Portugal-centavos, a apodrecer República, extrema-unção- -enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com vergonhas naturais em África!
Ultimatum a vós que confundis tudo, o humano com o popular
Vós que confundis tudo, que, quando não pensais nada, dizeis sempre outra coisa! Chocalhos, incompletos, maravalhas, passai!
Vós, anarquistas deveras sinceros
Socialistas a invocar a sua qualidade de trabalhadores
Para quererem deixar de trabalhar
Sim, todos vós que representais o mundo
Homens altos gigantes de formigueiro
Passai por baixo do meu desprezo
Passai aristocratas de tanga de ouro
Passai Frouxos
Passai radicais do pouco
Quem acredita neles?
Mandem tudo isso para casa
Descascar batatas simbólicas
E todos os chefes de estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados pra baixo à porta da Insuficiência da Época!
Tirem isso tudo da minha frente!
Arranjem feixes de palha e ponham-nos a fingir gente que seja outra!
Tudo daqui para fora! Tudo daqui para fora!
Ultimatum a eles todos, e a todos os outros que sejam como eles todos!
Se não querem sair, fiquem e lavem-se!
Época vil dos secundários, dos aproximados, dos lacaios com aspirações de lacaios a reis-lacaios!
Fechem-me tudo isso à chave
E deitem a chave fora
Sufoco de ter só isso à minha volta
Deixem-me respirar!
Abram todas as janelas!
Abram mais janelas!
Do que todas as janelas que há no mundo!
Nenhuma ideia grande
Nenhuma corrente política que soe a uma ideia grão!
E o mundo quer a inteligência nova, sensibilidade nova.
O mundo tem sede de que se crie, tem fome de Futuro!
A Europa quer passar de designação geográfica a pessoa civilizada!
O que aí está a apodrecer a vida, quando muito é estrume para o futuro!
O que aí está não pode durar porque não é nada.
Eu da raça dos navegadores
Afirmo que não pode durar!
Eu da raça dos descobridores
Desprezo o que seja menos que descobrir um novo mundo!
Proclamo isto bem alto
E bem no auge, na barra do Tejo de costas para a Europa
Braços erguidos
Fitando o Atlântico
E saudando abstratamente o infinito.
Álvaro de Campos
Consultor de comunicação
Escreve à quinta-feira