No original, com Anthony Hopkins e Jodie Foster, alguns estarão lembrados da cena em que, atrás das grades, com a sua tão polida e nobre quanto ameaçadora persuasão, o dr. Lecter lembra Clarice, a jovem investigadora do FBI que busca o seu conselho para caçar um seriall killer, sobre a necessidade de não ignorar os princípios analíticos, à cabeça o da simplicidade. E regressamos aos clássicos – “Leia Marco Aurélio: sobre cada coisa em particular questiona o que ela é em si mesma. O que está na sua natureza.”
Ora, antes de irmos ver o que escreveu numa outra encarnação o protagonista do nosso “O Silêncio dos Inocentes”, convém lembrar que nesta produção de baixíssimo orçamento, que não chega nem ao 1% do bolo total do Estado, como não há dinheiro para estrelas das que enchem salas, foi-se buscar alguém aos bastidores. Um actor com uma impecável folha de serviço, garantindo desde logo que não se repete um episódio embaraçoso como o que levou o seu antecessor a ser posto fora. A primeira orientação estava dada à partida: nada de impetuosidades, nada menos que a máxima discrição, até para não inflamar mais o estrepitoso bando da cultura.
No filme ele acabaria por dar a cena e contracena, no duplo papel de aluno e mestre. E para não nos enrodilharmos mais nesta trama, para darmos descanso à analogia, digamos que esta é a história de um sacríficio. O de um homem às mãos de si mesmo. O poeta que perdeu o pio, para que o diplomata de carreira chegasse ao cume, ministro da Cultura.
Luís Filipe Castro Mendes, para quem não lhe conhece a obra, enquanto poeta tem um desses percursos literários dos quais, redonda e meigamente, se diz que primam pela coerência e solidez. É um poeta culto, desses que gostam de se perder no sótão da erudição, falar com os seus botões, e que do respeito fazem a sua virtude. Atento aos ritmos, à eficácia interna da língua que, escutada ancestralmente, traz já uns modos finos, uma dança de salão, Castro Mendes demonstrou mais habilidade no rendado das formas clássicas, do que quando aderiu ao chamado verso livre. De tal modo que dá às vezes a sensação de que a liberdade lhe causa um certo nervosismo, estando mais à-vontade a perfumar o ar da sua cela.
E aqui podemos fazer a ponte com o que lhe sucedeu no momento em que foi chamado a dirigir o Ministério da Cultura. Vinha aí um poeta e, num tempo com o tecto tão baixo, isso foi o suficiente para causar algum suspense. Só que houve logo as reveladoras declarações quanto ao novo acordo ortográfico – essa formidável ideia de umas bestas para quem a língua não passa de um trânsito liso. Ao poeta não lhe fazia diferença nenhuma, estava tudo muito bem, e depois veio a perceber também que não havia lugar para um discurso e uma visão mais audazes. Como se os problemas de fundo da Cultura passassem não tanto pela sua absoluta descaracterização e, consequentamente, a subalternização do seu papel social, mas simplesmente por uma eficácia na resolução das questões pendentes.
Para os que chegaram a entreter ilusões de que um poeta pudesse ambicionar mais do que ser um funcionário exemplar, dos que aprofundam com as suas virtudes a inépcia de todos os que entendem a cultura como uma mera liberalidade do Estado, uma “excrescência ornamental”, que serve sobretudo para distrair – “Não é verdade rapaz? E amanhã há bola/ antes de haver cinema madame blanche e parola” -, esses acabaram certamente desiludidos
Bem pode ter na cabeça os poetas e os melhores versos, sabê-los de cor, bem pode exaltar a poesia como uma forma constante de crítica à vida, ou à vidinha, pode prometer um “Regresso” – “Voltar à poesia, a esta distância sem rumo nem projecto/ voltar à poesia para estar mais longe/ do que sou”-, chegada a hora que conta, teremos de concluir que teve de seguir uma “vontade funcional” e abandonar a poesia pelas “regras de protocolo”. Como se pode ser ministro da Cultura e não trair aquele sentido de refundação que Maiakovski viu na poesia, falando de uma “arte nova” – nova, repetia ele – “que arranque a República à escória”?