Tom Hanks não olhou para o mercado do pessimismo quando decidiu comprar uma casa desesperadamente delapidada em “Um dia a Casa Cai”. Não precisava. Estava-se em 1986, quando os Estados Unidos enriqueciam com o comércio de otimismo, a União Soviética cedia sob o seu insustentável peso e poucos se atreviam a prever outra coisa que não um futuro risonho para a ordem liberal. Mas Tom Hanks comprou a casa a um larápio que enganou o equilíbrio do mercado. Tinha pelo menos essa desculpa quando o edifício se começou a desfazer nas suas mãos. Por estes dias, porém, é irresponsável quem não consultar o baixo preço do pessimismo antes de olhar para a próxima eleição capaz de mudar tudo no mundo. Donald Trump e Brexit aconselham-no.
A grande eleição deste ano acontece em França e há muito que existe uma narrativa consensual para o seu desfecho. Marine Le Pen e a sua Frente Nacional vencem a primeira volta de abril, sim, provavelmente em primeiro. As sondagens indicam claramente o que acontecerá em seguida: o candidato de centro-direita – neste caso François Fillon, mas poderia ser qualquer outro – derrota Le Pen na segunda volta de maio com uma margem confortável. As últimas consultas afirmam que Fillon baterá Le Pen com qualquer coisa como 65% dos votos na segunda volta. A sabedoria tradicional diz o mesmo. Contra uma candidata que promete abandonar a moeda única, a União Europeia e a ordem liberal, qualquer candidato moderado conseguirá o voto europeísta e republicano. Aconteceu com Chirac em 2002 e acontecerá outra vez com François Fillon. O mercado do pessimismo, porém, sugere alguma precaução.
A tentação pela queda
Quando Jean-Marie Le Pen chegou à segunda volta contra Jacques Chirac, em 2002, a frente republicana francesa insurgiu-se com violência e derrotou-o com mais de 82% dos votos. O mesmo não acontecerá este ano. Marine, em primeiro lugar, não é Jean-Marie. O lado negro do nacionalismo europeu de direita que Jean-Marie levava quase orgulhosamente na lapela, num regime semi-aberto de alusões racistas e antissemitas, não se repete na sua filha, que mudou a cara da Frente Nacional, onde hoje comentários como os que o seu pai fazia, mesmo pelos corredores e em segredo, são o fim da careira no partido. Marine transformou a Frente Nacional numa força política aceitável, que da retórica racista fez uma forte política identitária francesa, por um lado, e, por outro, fez do ressentimento contra a desigualdade uma frente contra a globalização desenfreada que, segundo argumenta, entrega demasiado poder a grandes empresas e não o dá em quantidade suficiente aos trabalhadores.
François Fillon, por outro lado, é tudo menos o seu contrário. Os seus temas fortes são a imigração e o combate ao islamismo radical, como acontece com Le Pen. Em alguns aspetos, aliás, o homem de centro-direita consegue ser mais agressivo do que a sua adversária, como quando recomenda um ensino grandioso da história francesa ou argumenta que o islão, como a ideologia nazi, não passa de um sistema de valores totalitários. No que diz respeito à imigração, Fillon, como Le Pen, defende que esta deve ser levada a um mínimo – no seu programa sugere controlar a imigração de determinadas regiões, o que é lido como uma tentativa de restringir a chegada de muçulmanos. Os candidatos são quase indistinguíveis em temas como a segurança nacional e política externa. Ambos querem mais da primeira e uma abordagem mais pragmática à segunda.
Mas a grande divergência entre Fillon e Le Pen é hoje motivo de grande desconforto na frente republicana e europeísta. Fillon quer cortar nos impostos às empresas, aumentar a idade de reforma, despedir nada menos do que 500 mil funcionários do governo e reduzir substancialmente a dimensão do Estado Social. Marine Le Pen promete o contrário. Mais Estado e mais Segurança Social – para os franceses, não para os outros. A sua política económica de Le Pen está muito mais à esquerda do que a de Fillon, que diz que a sua agenda política conservadora é o antídoto ideal para combater a Frente Nacional. Mas os votos que entregaram a vitória ao Brexit e a Donald Trump vieram da classe média e dos operários desiludidos, não do eleitorado racista e ilamofóbico. Enquanto a esquerda francesa estiver fragmentada, Le Pen pode receber dela alguns votos na segunda volta. Talvez o suficiente para derrubar a frente republicana e fazer tombar Bruxelas. Como a casa de Tom Hanks.