Lalanda de Castro e Cunha Ribeiro. Sangue fresco para os amigos

Lalanda de Castro e Cunha Ribeiro. Sangue fresco para os amigos


Vamos a um guião alternativo: suponhamos que as grandes fábricas de sangue sintético criadas pelos japoneses em TrueBlood usavam como matéria prima plasma humano e conseguiam um monopólio…


Não é só na ficção que o sangue vira negócio. Este ano a multinacional Octapharma, gigante mundial no fabrico de produtos hemoderivados a partir de plasma humano, passou a estar na mira da Justiça portuguesa, com o Ministério de Saúde a suspeitar que o monopólio de fornecimento aos hospitais portugueses nos últimos anos resultou da ligação de amizade entre o responsável da firma, Joaquim Lalanda de Castro, e o ex-presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa. 

No Brasil, o negócio da farmacêutica – que em 2015 faturou 1,5 mil milhões de euros a nível mundial com um lucro de 351 milhões – também já esteve sob investigação, mas o processo “Máfia dos Vampiros”, que investigava a concertação de farmacêuticas na sobrefaturação de produtos ao Estado brasileiro, acabou arquivado em 2015, por falta de indícios.
Vampirismos à parte, quem seguiu a série “True Blood” (Sangue Fresco) saberá como o sangue engarrafado é um bem precioso. Se na saga a fórmula foi desenvolvida por mentes brilhantes como Louis Pasteur, que diz que era vampiro, e aperfeiçoada por cientistas japoneses – permitindo que os vampiros passassem a viver entre humanos sem os transformarem para se saciarem (claro que isto até os vampiros mais puristas se revoltarem e quererem voltar a atacar pescoços) – na vida real o ‘negócio da china’ surge na Suíça, em 1983. 

A empresa foi fundada por Wolfgang Marguerre, hoje com 75 anos e o 17.ª homem mais rico na Alemanha, com o objetivo de desenvolver tratamentos para pessoas com doenças do sangue.

Num perfil publicado na revista “The Source” em 2008, conta-se como Marguerre é um homem de gostos clássicos. Começou a tocar violino aos seis anos e que hoje grava discos, que oferece aos funcionários. O seu primeiro carro foi um ‘Messerschmidt’ vermelho.  

Estudou Ciência Política e Economia, mas acabou por fazer carreira no ramo farmacêutico. Passou pela Baxter-Tavenol e depois pelo Grupo Revlon, sediado em Paris.

Não é possível perceber como teve a ideia de fundar a Octapharma, que também empregou José Sócrates, apenas que o negócio cresceu de forma exponencial nos últimos 30 anos, tendo hoje mais de 6000 funcionários e 45 escritórios espalhados pelo mundo.

A Octapharma começou por fabricar os seus produtos a partir de plasma recolhido nos centros de colheita da ABC (America’s Blood Center) mas atualmente gere 40 centros próprios na Alemanha e nos Estados Unidos. Na maioria dos países europeus, o pagamento por dádivas de sangue é ilegal, mas tanto Alemanha, como Estados Unidos e Rússia autorizam a remuneração dos dadores.

Segundo o site internacional da Octapharma, os novos dadores podem ganhar até 250 dólares (237 euros) pelas primeiras cinco dádivas e é possível doar plasma a cada duas semanas, pelo que dificilmente haverá dadores a juntar grandes fortunas. Com um negócio rentável, a empresa tem ainda assim um programa de responsabilidade social e Marguerre doou 15 milhões para a renovação do teatro da sua terra natal Heidelberg, na Alemanha. 

E o que é a mina de ouro, convém que se explique: o plasma é a parte líquida do sangue que transporta as células vermelhas, as células brancas e as plaquetas e que contém essencialmente água e proteínas. São as proteínas, sobretudo, que interessam à indústria farmacêutica, pois podem ser usadas no fabrico de medicação para doenças do sangue, como hemofilia, ou doenças do foro imunitário. 

Voltando à atualidade, mal foi conhecida a Operação O-Negativo, Lalanda de Castro – que também chegou a ser arguido no processo brasileiro – pediu a demissão a Marguerre, que mantém o cadastro limpo. O Ministério Público português investiga contratos de 137 milhões de euros ganhos pela Octapharma em concursos ou ajustes diretos feitos pelos hospitais públicos. Cunha Ribeiro, que foi professor de Lalanda de Castro na Faculdade de Medicina do Porto, e de quem é amigo desde essa altura, ficou em prisão preventiva, indiciado pelos crimes de corrupção passiva, branqueamento de capitais e recebimento indevido. Lalanda de Castro foi detido na Alemanha, mas foi libertado pelo juiz que considerou não haver motivo para o mandado de detenção europeu. Entretanto apresentou-se à justiça portuguesa.

Se esta história tiver alguma coisa de vampiros, o sugado foi o Estado. Nos Estados Unidos, no balanço do sucesso da série True Blood, a HBO fez um acordo com a July Omni Consumer Product para vender um refrigerante Tru-Blood, inspirando-se no tal sangue engarrafado dos japoneses. Quem provou diz não ser grande espingarda (na série, os vampiros também continuam a preferir sangue fresco), mas um dos slogans é oportuno para aquele que foi um dos ‘filmes’ do ano: “Friends don’t let friends drink friends”.