Chamam-lhe a football. À primeira vista pode não parecer grande coisa, apenas uma gorda mala de couro, um pouco mais pesada do que o normal. Aparece em algumas fotografias que se tiram ao presidente norte-americano quando está em viagem, nas mãos de um militar vestido em traje de cerimónia. Dentro da superfície de couro, porém, a football guarda um mecanismo capaz de destruir uma boa parte do mundo. Em termos simples, a mala tem um sistema portátil que permite ao presidente comandar o disparo de dezenas de bombas nucleares capazes de causar uma destruição muito maior do que a que se viu em Hiroshima e Nagasaki. O presidente pode acioná-lo sem autorização dos congressistas ou dos tribunais. A ideia, afinal de contas, é dar ao líder do mundo livre tempo de reação que baste para poder responder a um ataque nuclear e conseguir que o país se mantenha pelo menos em parte de pé. E não há muito tempo de sobra no apocalipse.
Esta será a mala que acompanhará Donald Trump quando ele tomar posse como presidente americano no final deste mês. Com ele, a football parecerá menos um resquício dos tempos alarmantes da Guerra Fria do que hoje dá a entender. Por esses dias em que a imaginação americana deambulava pela perspetiva de um apocalipse nuclear, Kubrik escreveu Dr. Strangelove, em que um general americano enlouquecido, convencido de que os soviéticos haviam contaminado as reservas de água do seu país com flúor – “os nossos preciosos líquidos corporais” –, ordena um ataque nuclear contra a União Soviética sem que este tivesse sido aprovado pelo presidente. Trump não é nenhum General Jack D. Ripper. Mesmo que na campanha tenha perguntado três vezes na mesma conversa, num encontro com um conselheiro para a defesa nacional, por que razão não podia ele lançar ataques nucleares se entendia que essa era a melhor decisão. Mas se é verdade que Donald Trump não é nenhum general enlouquecido e que o novo ano não é 1964, também é verdade que o próximo líder americano significa uma nova era de incerteza. Trump pode até não provocar o apocalipse nuclear, mas tem o dedo noutros gatilhos relevantes.
Conflitos à espreita
A sua primeira ação militar será quase certamente contra os territórios sírios e iraquianos do Estado Islâmico. Trump acredita que o combate no terreno não está a avançar à velocidade ideal e que o número de bombas disparadas não são suficientes, mesmo que no último ano o grupo jihadista tenha perdido dezenas de milhares de combatentes e cerca de um terço do seu suposto califado. “Vou bombardeá-los até não haver amanhã”, prometeu, sem se demorar muito na destruição colateral em que a sua camanha pode resultar. Se a aviação russa é acusada hoje da morte de milhares de pessoas na Síria e se isso começa a desequilibrar a balança do ódio no Médio Oriente de Washington para Moscovo é porque as bombas russas caem quase indiscriminadamente em Alepo, enquanto em Mossul os caças americanos são mais criteriosos – mesmo assim morreram já centenas de civis com bombas ocidentais. O Estado Islâmico nasceu em parte do descontentamento sunita que a violência da invasão americana do Iraque deixou para trás. Bombardeá-lo “até não haver amanhã” pode apenas produzir novas encarnações.
Trump pode mudar o equilíbrio do poder mundial sem lançar uma única bomba. O próximo presidente americano sugeriu já que o Japão e a Coreia do Sul podem ter uma via aberta para as suas próprias bombas nucleares se isso significar que Washington recebe uma conta mais baixa pelos destacamentos que tem no Pacífico. Para já, Trump planeia apenas uma guerra comercial com a China, mas se as tensões nos mares disputados do sul se acentuarem, a sua estratégia pode tornar-se mais agressiva. De volta ao Médio Oriente, o próximo presidente vê com muito melhores olhos uma política agressiva – possivelmente militar – contra as ambições iranianas, que um acordo internacional impede de chegarem a bombas nucleares. Não é fácil imaginar que caminho pode Trump tomar na eventualidade de a sua amizade russa lhe explodir na cara, ou que abordagem vai escolher para as ambições nucleares da Coreia do Norte. O filme de Kubrik termina com um homem montado num míssil e uma grande explosão. A presidência de Trump ainda não tem fim definido.