Bem-vindos a estes tempos em que o mundo avança caminhando para trás. Em que o progresso não nos torna mais justos nem mais inteligentes ou solidários, pelo contrário. Em que o populismo está escanchado sobre o lombo da democracia. Em que o sistema encobre entre neblinas o antissistema. Em que o politicamente incorreto é o politicamente correto.
Bem-vindos aos tempos em que votamos para que não exista política. Nem boa nem má – nenhuma. Em que votamos, não por identificação social, acordo com programa económico ou simpatia cultural, votamos para castigar o sistema. Votamos no verdugo. Em que, pela primeira vez na história, já não olhamos o futuro com expectativa de esperança, mas sim como incógnita e com reserva.
Entre o muito que na vida tenho dificuldade em entender, ou me recuso a aceitar como padrão de raciocínio, sobressai o comportamento voluntário do desgraçado que por submissão se transforma num ogre para os seus iguais.
Num dos primeiros capítulos do livro “A Cabana do Pai Tomás”, de Harriet Stowe, o escravo negro Tom é vitima de um selvagem espancamento por outros dois escravos, que se esforçam por mostrar desta forma que são dignos da confiança do dono do engenho e plantação de algodão onde todos viviam em servidão.
Nesse duro episódio, a autora retrata-nos uma das misérias do ser humano: a capacidade de fazer mal ao seu semelhante de condição só para agradar a quem tem o poder. Situações equivalentes aconteceram nos períodos mais negros da história humana.
Na Inquisição, nos genocídios, na resistência ao nazismo e ao fascismo, na luta pelos direitos civis, muitos dos insuspeitos colegas de oficio, vizinhos, correligionários de força política e familiares, para escapar a perseguições, por ganância, estupidez ou maldade, foram dos que mais cruéis se mostraram na hora da denúncia e no momento da tortura.
Hoje, por cá, que ainda estamos no estágio da propaganda que sustenta a intolerância e prepara o crime, é comovente ver o infame arrebatamento furioso dos convertidos à direita de cada vez que escrevem ou alvitram criticamente sobre revolução, PCP, governo de esquerda, sindicatos ou melhoria das condições de vida das pessoas.
Em redenção pelos pecados de outrora terem frequentado alguma esquerda – por moléstia, entenda-se, entretanto tratada com doses de higiénica convivência e adequadas leituras –, estes seres conhecidos nos prostíbulos por ex-qualquer-coisa estão sempre nas primeiras linhas da direita política.
Solícitos na sua douta experiência e deformada inteligência, estão aí para nos explicar que a História acabou, recordam? Que o PCP está morto, que os sindicatos só mobilizam os do PCP que, como sabemos, está morto. Que as sondagens deles falham sistematicamente, mas a culpa é dos russos, que o governo não aguenta, mas afinal funciona.
Que não se pode negociar a dívida mas, afinal, parece que se pode negociar a rigidez da dívida, e que quem provocou a crise financeira, o desastre económico e a derrocada da banca nacional, que arrastou milhares de famílias para a miséria e empresas para a falência, foram os pobres e as suas loucas reivindicações, e não a grande farra da dívida montada por banqueiros, grandes empresários criminosos, milionários, políticos corruptos, incompetência e fraude.
No fim e no principio são doutores do embuste com alma de escravos. São cúmplices de crime contra a democracia, contra os cidadãos e contra a liberdade. Assaltam as instituições e recebem o dízimo por transformarem a cinza em tese e a pobreza em destino.
Em Espanha, um padre criou uma aplicação para o telemóvel chamada “Confessor Go” que permite localizar o clérigo mais próximo do penitente para administrar a confissão.
A partir de agora, qualquer destes “especialistas” de fancaria ou político atormentado pela mentira não terá de esperar quatro anos para ser indultado nas urnas. Poderá aliviar a sua consciência num encontro com um sacerdote, num parque, numa praça, mesmo à saída do lupanar, do banco ou do escritório de advogados, só para citar os locais tradicionais do pecado.
Esta recuperação de pecadores teria deixado Gogol, cujo mais famoso personagem viaja pela estepe russa, no seu trenó, comprando almas mortas, estupefacto.
É indiferente o que façam ou queiram os monstros amáveis. A História irá cumprir-se. A luta universal entre explorados e exploradores adquire novas qualidades e formas. E, hoje, homens já não pedem misericórdia, exigem a realização dessa ancestral aspiração: justiça.
Consultor de comunicação
Escreve à quinta-feira