Fidel Castro deve ser das poucas pessoas que, ao morrer, não se tornou imediatamente um ser maravilhoso e unânime. A morte costuma ter por efeito apagar defeitos, rancores, sacanices, distúrbios, invejas e toda a sorte de características e sentimentos menos radiosos, transformando o morto num ser de brilho e paz e todos os que o recordam em seres equânimes e agradecidos.
Fidel escapou a isso, da mesma forma que escapou – diz-se – aos muitos atentados dos maldosos imperialistas. Mas não escapou, coitado, ao modo simplista com que se tende a tratar as coisas neste nosso tempo – um tempo de compulsão para a literalidade, de carinho pelos rótulos, de amor pela rapidez estrepitosa e de aversão ao complexo e ao profundo.
E se juntarmos a isto que o debate político entre nós, nos dias que correm, além de amiúde sofrer daquela pobreza de pensamento pós-moderna, está ainda a digerir os acontecimentos seguintes às últimas eleições legislativas – e com uma digestão custosa e deficiente, muito emotiva e pouco racional –, já se vê que a política em Portugal (e a opinião umbilicalmente ligada à política) tratou a morte de Fidel, salvas algumas boas exceções, com a mesma elevação, a mesma reflexão, a mesma profundidade e a mesma objetividade com que os adeptos dos clubes da Segunda Circular tratam à segunda-feira os acontecimentos ocorridos dentro das quatro linhas no fim-de-semana anterior.
Fidel morreu, e a coisa a seguir passou-se mais ou menos assim: Fidel foi um revolucionário. Ou um lutador. Ou um progressista. Ou Fidel foi um monstro. Ou um ditador. Ou um algoz.
E pronto, ou foi uma coisa ou outra, e já está. E quem dizia que não foi, ou era um totalitário leninista ou era um reacionário execrável, chegando a parecer em certos casos que mais importante do que Fidel era o que os adversários tinham dito. Aliás – disseram os que pintaram Fidel com melhores cores –, estava-se mesmo a ver que os que sempre foram contra as conquistas operárias e os avanços de abril tinham agora que negar as qualidades de Fidel e os progressos de Cuba. E – por seu lado, disseram os que acentuaram as trevas da personagem – só se poderia esperar de quem tomou o poder em Portugal com manobras e ardis e contra o ditado das urnas que esquecesse agora tudo o que Fidel teve de mau.
Só faltou responder ao elogio a Fidel ou à nostalgia dele com um “cale-se, sua esquerdista mal lavada” ou “meta a ditadura do proletariado no saco, seu soviete de trazer por casa”; e à crítica ao mesmo Fidel ou à recordação forte do seu manejo do mal com um “fora, seu fascista pançudo” ou “já cheira a ranço queque e marialva”. Et cetera, e assim vamos, cantando e rindo (por assim dizer), numa espécie de política do alecrim e da manjerona, dada a esquecer que as coisas, tal como Fidel, são bem menos simples, menos literais e menos superficiais do que isso.
Nada é só pátria ou só morte, isso é conversa de dérbi ou conversa de quem na política não dá mais ou não quer mais do que só um poucochinho.