Daniel Innerarity. “O radicalismo acaba por deixar as coisas  tal como estão”

Daniel Innerarity. “O radicalismo acaba por deixar as coisas tal como estão”


Nas sociedades democráticas não há espaço para revoluções, só para reformas. Isso exige a criação de consensos


Aquilo que impressiona em primeiro lugar quando falamos com ele é a sua simpatia. Como se todas as questões do mundo precisassem de uma conversa agradável. Daniel Innerarity veio a Portugal no âmbito de uma conferência da Fundação Francisco Manuel dos Santos dedicada ao magno tema “Que democracia?”. O filósofo é conhecido pelas suas posições sobre a necessidade de reconhecer que a democracia só será real se assumirmos que vivemos em sociedades complexas que necessitam, ao mesmo tempo, de conseguir a legitimação e participação popular e de ter instâncias em que a delegação e o trabalho dos especialistas seja possível. A sua posição moderada pretende ser uma terceira via entre a tecnocracia neoliberal da globalização sem legitimidade democrática e a alegada simplificação e dramatização simplista do populismo. Reivindica a necessidade de conseguirmos responder às grandes questões do nosso século: a mudança climática, o crescimento das desigualdades e as mudanças nas formas de produzir em instâncias de poder mais globais, saindo do âmbito do Estado-nação, que consigam articular o político, o social e o económico. 

Considera-se basco?

Sim, sou basco. 

E o que é ser basco hoje em Euskal Herria, na sociedade espanhola e no mundo global? Certamente é diferente de ter características físicas e genéticas diferentes, como reivindicava o fundador do nacionalismo basco, Sabino Arana?

Eu sou de origem escocesa…

É o chamado independentista dos quatro costados (risos).

O meu tetravô foi da Escócia para os Estados Unidos e depois voltou. Penso que todas as sociedades estão feitas de gentes com muitas misturas. É preciso procurar uma posição aberta no mundo, tendo um tipo de identidade afetiva, junto com um determinado posicionamento político. É uma mistura de identidades, cada um de nós faz a sua identidade patchwork. Eu, por exemplo , sinto-me muito à vontade em Portugal. É o país do mundo onde mais obras minhas foram traduzidas. E é o sítio onde me sinto mais lido e compreendido. Posso dizer que, de alguma maneira, Portugal faz parte da minha identidade. Eu vivi quase toda a minha vida fora – França, Alemanha e Estados Unidos -, por isso tenho uma identidade que expressa este percurso.

Nos seus livros defende que a autodeterminação é uma espécie de ilusão.

Ufff, isso merece uma explicação: a autodeterminação é um princípio democrático irrecusável: ninguém tem o direito de dizer a uma outra pessoa o que tem de fazer. Isto é um primeiro ponto. Segundo ponto, que é o sujeito, o self da autodeterminação, é uma questão muito problemática: têm direito os portugueses a autodeterminarem-se absolutamente na Europa quando muitas das decisões que os portugueses tomam têm efeitos extraterritoriais? Eu acredito que há limites à autodeterminação em dois sentidos, no sentido horizontal e no vertical: horizontal porque vivemos em sociedades dependentes cujas decisões e atos afetam gente de vários países, e estes interesses têm de ser tidos em conta no momento de tomarmos decisões; para além disso, há outro sentido que limita a nossa autodeterminação, que é uma certa verticalidade e uma certa delegação de poderes das decisões políticas. Sobretudo quando implicam decisões políticas de grande complexidade. Tem de haver uma delegação de poderes sempre sujeita à sua revogação pela autoridade popular, que é a base do poder. Mas também é necessário introduzir a opinião dos especialistas nas decisões políticas. A autodeterminação democrática só é real se a colocarmos no contexto de uma multiplicidade de fatores a ter em conta. 

Impressionou-me o seu conceito de política: por um lado, faz uma crítica ao liberalismo e até diz que alguns dos seus oponentes, como Negri, dizem quase a mesma coisa se substituirmos, por exemplo, a palavra “mercado” por “multitude”, mas por outro lado afirma que a política é o lugar do consenso, e não do conflito.

Eu acho que, de facto, as posições de Negri são muito semelhantes das dos defensores do mercado, mas não nego o papel do conflito na política. Eu penso que há formas de definir o que é o antagonismo político, como todas as que vêm do decisionismo de Carl Schmitt, que simplificam todo o campo de jogo e nos impedem de encontrar espaços comuns de reconhecimento, graças aos quais as sociedades se transformam. Sem espaços de encontro e compromisso, as sociedades ficam paradas.

Há sempre as revoluções.

Neste momento não há revoluções. Eu estou a analisar as democracias de agora: dececionantes, finitas e com muitos defeitos. Nas democracias atuais não há uma teoria da revolução, o que há são gestos críticos muito radicais, um sistema político que se agita com muita velocidade e um estancamento de fundo. E isso é que me preocupa, que não consigamos pensar nas grandes decisões políticas, que têm que ver com as mudanças climáticas, com as alterações do sistema de produção e com o crescimento das desigualdades, que não conseguimos abordar porque alguns não o querem fazer, porque lhes dá jeito para manterem as suas posições de hegemonia e de assimetria, e outros porque não conseguem formular políticas que possam gerar espaços de compromisso. Eu acho que, normalmente, as formas de radicalismo acabam por deixar as coisas tal como estão.

Por isso, de alguma forma, é contrário à ideia da paixão na política?

Estou contra a excessiva dramatização da diferença e contra a visão heroica da política. Acredito que a política tem de se secularizar , tem de ser menos épica, mais aborrecida e prosaica, o que não quer dizer que não se continuem a escrever em prosa coisas maravilhosas.

Mas não compartilha a ideia de Rancière que há momentos de polícia, a gestão das coisas, e momentos de política, que são quando os sem-parte tomam a palavra, no pressuposto da igualdade, e conseguem uma rutura que, de alguma forma, traz uma maior igualdade.

Não estou de acordo totalmente com ele. Se me permite a simplificação: temos, de um lado, administradores prudentes da normalidade, sem nenhuma paixão democrática; e do outro lado temos apenas a força brutal das paixões, sem ter em conta a racionalidade. Esta rutura entre o princípio da realidade sem força simbólica mobilizadora e um princípio de prazer que desconhece a complexidade da realidade é a grande rutura das nossas democracias. Podíamos chamar-lhe, sem exagerar muito, a rutura entre tecnocratas e populistas. Acho que temos de suturar e coser essa rutura, porque isso deixa o campo livre a Hollande e Le Pen em França – como dizia um jornalista dos EUA, Holândia e Lepénia em França: dois países completamente diferentes que não se encontram em nenhum lugar e têm como consequência uma sociedade que não se consegue transformar. 

Escreveu que, neste momento, a esquerda é pessimista e a direita otimista, e que o defeito moral da direita é o cinismo e o da esquerda é a melancolia. Mas é possível ter otimismo no momento em que há uma crise climática tão grave, e que ninguém parece levar suficientemente a sério, e na altura em que há um crescimento abrupto das desigualdades?

O mundo que temos é miserável de muitos pontos de vista. O que eu digo é que a esquerda tem muitas razões para preocupações, mas não devia cair pela falésia da melancolia…

Não partilha das ideias de Michael Lowy sobre a ligação entre revolta e melancolia, este não é o seu campo.

O meu campo não é o da melancolia, mas o da preocupação. Penso que temos de estar preocupados e ocupados a combater as misérias do mundo, mas não a melancolia, que muitas vezes não passa de lamber as próprias feridas e substitui a ação e o combate pelos gestos críticos. Hoje em dia, a esquerda não tem uma teoria para o conjunto da sociedade, substituiu-a por um conjunto de gestos críticos. 

Há uma certa contradição nas suas posições: por um lado, critica a melancolia da esquerda, recusa a ideia de utopia, acha que a esquerda não deve, como alguns como Zizek defendem, pensar para além daquilo que hoje é dado como pensável; mas, por outro lado, acha que esta sociedade tem excesso de presente e ausência de ideia de futuro. 

Não é contraditório, porque o futuro das sociedades não tem de ser enfático nem utópico. É um futuro cheio de incertezas. Para ser pessimista é preciso estar certo de que o futuro tem de ser sempre muito pior; ao contrário, para ser otimista basta deixar o futuro em aberto. Eu sou otimista mais por incerteza do que por segurança, e acredito que a utopia, neste momento, deve formular-se mais como abertura e indeterminação do futuro do que como antecipação de um futuro fixo e estático que podemos identificar e desejar matematicamente.

Não é desejável ter cuidados e precauções, e até um certo pessimismo, numa sociedade de riscos que tem centrais atómicas?

Eu formularia de outra maneira – a ver se o convenço neste diálogo em que me está a por à prova (risos). Neste momento, a campanha eleitoral dos EUA [decorria no momento em que foi feita a entrevista] está cheia de formulações mágicas e teorias da conspiração: os republicanos, que apoiam Trump, dizem que o Estado Islâmico foi inventado por Obama, os democratas dizem que Trump, no fundo, é o candidato de Putin, e fazem grandes correlações de sentido que explicam a globalidade do que se está a passar. Eu penso que isto é reflexo da nossa necessidade de compensar a incerteza radical no nosso mundo, e por isso tanta gente acredita nestas teorias da conspiração. Não suportamos a incerteza. Dizer que nós, humanos, não suportamos a realidade é falso; o que nós não suportamos é a incerteza. Estas teorias são aceites porque simplificam a realidade e curam a ferida de não entender o que se passa. Mas transmitem uma ideia mágica da política como ela se pudesse explicar, tudo o que acontece, com grande facilidade por uma conspiração universal. Ao mesmo tempo são uma justificação para a nossa imobilidade: não podemos fazer nada perante estas grandes conspirações. Eu acho que é preciso, pelo contrário, abrir o espaço da política, ela é mais do que o lugar das grandes conspirações, o sítio de la chapuza [da confusão, do trabalho mal feito e das coisas que não correm bem], no sentido bom e mau da palavra, é o lugar em que se avança e se retrocede. O que quero dizer é que não é possível mobilizar o mundo a partir de um lugar e ponto de vista remoto. Aqui, o que há é micromovimentos conflituantes e de cooperação, todos ao mesmo tempo, que temos de aprender a gerir com menos dramatismo. 

Não se pode dizer também que o abandono da mudança radical e da rutura também é redutor, porque nos condena a pensar a política apenas com as coordenadas do presente, e não buscar melhores formas de resolver problemas que hoje parecem insolúveis? Num artigo seu sobre a crise da social–democracia, a certa altura defendia que o problema deles foi não terem aceitado o mercado e a globalização. Não se pode dizer exatamente o contrário? Que a social-democracia deixou de servir de contraponto democrático quando aceitou, a partir de Blair, todos os ditames neoliberais?

Quando a social-democracia de Blair aceitou o mercado e a globalização, fê-lo com muito pouca ambição transformadora. Transformaram a vida deles, mas não a das demais pessoas, nomeadamente a dos pobres do Reino Unido. Eu vou colocar de outra perspetiva, porque falar de Blair funciona como uma enorme redução e permite uma enorme simplificação: eu penso que a social-democracia na Europa continua a ter uma má consciência na hora de exercer o poder, e pensa que ele é necessariamente uma prática negativa porque significa ter de aceitar determinadas práticas e fazer contemporizações em relação aos seus objetivos últimos ; e, por outro lado, não consegue entender que a globalização está cheia de oportunidades e é necessário configurá-la num sentido progressista, e que o mercado é uma instituição limitada, finita, a necessitar de correções, mas é uma instituição inventada pela esquerda. As primeiras críticas do mercado vieram da direita tradicionalista. Há homens como Proudhon- um socialista utópico que se opôs a Marx e, se tivesse triunfado, talvez a nossa esquerda fosse muito diferente -, que defendia que o mercado era uma instância de libertação. Muitas das críticas que a esquerda faz atualmente à mercantilização das coisas não são realmente devidas ao mercado, mas a uma certa oligopolização das coisas que cria um domínio e uma assimetria de poder. A mim parece-me muito importante que no comércio, na informação e nas relações entre seres humanos haja instâncias em que não haja um domínio.

Aponta que grande parte da crise da política resulta da deslegitimação das mediações, da perda de estatuto dos especialistas, dos cientistas, dos jornalistas e dos representantes. Mas não há um outro aspeto da crise da política que é devido à contradição entre mercado e democracia? Na democracia, todas as pessoas têm um voto; no mercado, quem tem mais dinheiro manda mais. 

Claro que sim. E esta contradição é ainda mais aguda quando temos uma economia financeirizada, portanto, não sujeita a nenhum controlo territorial. Mas é uma ilusão pensar que podemos encontrar a congruência entre a economia e a política nos espaços do Estado-nação. É preciso fazer uma congruência entre o económico, o político e o social. É este o grande desafio para as nossas sociedades e para a esquerda…

Acredita que isso é possível fora do espaço do Estado-nação, com uma espécie de governança global?

Não há outra saída. No fundo, a minha conceção do atual momento da democracia e da política é que temos de evoluir para aquilo a que eu chamo uma democracia complexa. A maior parte dos nossos conceitos políticos – democracia, soberania, território – estão pensados há cerca de 300 anos, numa época de relativa simplicidade, sem grandes artifícios tecnológicos, com sociedades bastante homogéneas. E neste momento não temos estas sociedades nem este tipo de dispositivos tecnológicos. As nossas sociedades são muito interdependentes e a minha hipótese é que as democracias melhoram fazendo-se mais complexas. O seu caminho não é o da simplificação, mas o da complexização. A congruência entre a política, o económico e a sociedade, temos de a encontrar num nível superior e inédito.

Para conseguir a participação das pessoas como sujeitos dessa transformação não é necessário que as coisas, sendo complexas, possam ter sentidos mais simples que permitam essa participação?

Uma coisa, para ser complexa, não é necessário que seja complicada. E ser inteligível não é o mesmo que ser simples. Podem ser explicadas e legitimadas popularmente. Mas aquilo que temos neste momento é desastroso. Temos uma direita e uma esquerda que trivializam as coisas e simplificam o campo de jogo. Temos de dar um passo adiante até uma visão mais complexa das coisas. Temos de pôr fim a este tipo de simplificações políticas que nos levam a escolhas dramáticas. Hoje em dia, o apelar ao possível, não esconder a complexidade de determinados assuntos, defender uma certa delegação de poderes é correr o risco de se ser acusado de ser um tecnocrata de direita. Por outro lado, ser alguém que quer que o povo participe e tome o protagonismo do seu destino coletivo faz com que alguém seja logo acusado de ser “populista”. Acho que é preciso mudar essa dramatização para outras formas de catalogação.

Não vivemos, de qualquer forma, uma situação dramática quando temos um planeta onde, pela primeira vez, um por cento da população tem riqueza igual ou superior a 99% do resto da humanidade?

Sem dúvida que é uma situação dramática. Temos de mudar as coisas. O problema é que este tipo de mudanças que podemos fazer, nas sociedades democráticas desenvolvidas, são reformas revolucionárias, e não defender revoluções que deixariam todas as coisas como estão. Não digo que tenho uma solução para isto, o que digo é que as soluções às vezes mais críticas, acompanhadas dos gestos mais dramáticos e radicais, muitas vezes não mudam nada e contribuem para deixar as coisas tal como estão. São muitas vezes só teatro. Por exemplo, o dia de eleição de António Guterres para secretário-geral da ONU foi um dia feliz para os portugueses e para todos nós. Uma pessoa como ele, que não é um radical mas tem uma justiça muito forte, provavelmente pode fazer muito mais coisas que certos radicalismos sem capacidade de fazer trabalho e de gerar consensos.

Como vê a situação da União Europeia, a questão do euro? Não teme que o caminho seguido na integração europeia possa estar a destruir a viabilidade da UE?

Passámos de uma retórica em que não havia nenhuma alternativa senão continuar a pedalar na integração europeia, senão cairíamos – o que nos levou a apostar numa integração furtiva, impedindo a participação e a legitimação das pessoas -, para um tipo de discurso catastrofista, tipo Angela Merkel, que nos diz se cai o euro, cai a Europa. A única coisa boa que vai seguir-se ao Brexit, que no meu entender foi um erro tremendo, é voltar-se a mostrar que a Europa é uma realidade que depende de nós. Não é algo ditado pela necessidade, nem no sentido positivo de maior integração, nem no sentido negativo de um catastrofismo que nos querem vender agora.

Como analisa o aparecimento do Podemos no Estado espanhol?

É difícil dizê-lo em poucas frases. Acredito que enriqueceu o panorama democrático do país, tornou claro que temos uma democracia em que não só é possível contestar em manifestações mas também fazendo partidos políticos que têm bons resultados. Mas, ao mesmo tempo, volto à minha teoria de que temos uma democracia sem política, foram visíveis as dificuldades que temos na política de os novos agentes terem uma ação para respeitar a vontade e representação dos cidadãos numa coisa tão elementar como formar um governo. Acredito que o Podemos tem de evoluir e tem de conseguir uma elaboração de uma teoria de como se governa e como se consegue fazer transformações governando. Neste instante é sobretudo um movimento transformado em partido político que sabe e é capaz de impugnar decisões, mas não tem ainda a capacidade de fazer muito mais coisas. 

Como vê a situação na Catalunha e no País Basco?

Muito diferente nos dois sítios. No País Basco temos um sistema fiscal que nos permite ser praticamente soberanos do ponto de vista fiscal e sermos uma exceção em Espanha. E como a Catalunha não tem esse estatuto nem fiscal nem constitucional, e tem sobre si a ameaça de que tudo aquilo que eles conseguem tem de ser generalizado, isto é muito mais difícil de resolver que este acomodamento basco que nos permite ser uma exceção.