Em 1996, há precisamente 20 anos, por ocasião do aniversário da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, escrevemos, a dra. Maria de Jesus Barroso e eu, uma carta ao então presidente da Assembleia da República, dr. Almeida Santos, solicitando iniciativas para que fosse criada em Portugal a figura do Provedor da Criança, entidade que, na altura, só existia na Noruega. Hoje, este “defensor da população pediátrica” já existe em numerosos países, designadamente na Escandinávia.
Há dois dias comemoraram-se 27 anos da Convenção. Portugal foi um dos primeiros países a ratificá-la, através de todos os seus órgãos de soberania. No primeiro comité de avaliação, quem foi escolhido para representar a Europa foi a jurista portuguesa dra. Marta Pais. Nada como publicar essa carta, quer pela sua atualidade e necessidade (20 anos depois!), quer como homenagem à dra. Maria Barroso e a todas e todos que, desde há décadas, continuam a defender e a promover, mesmo contra ventos e marés, os direitos das crianças e dos adolescentes. Fica agora, aqui, à consideração do dr. Ferro Rodrigues.
«Exmo. Senhor
Presidente da Assembleia da República
O grupo etário pediátrico que, de acordo com a Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas, compreende as crianças e adolescentes entre o nascimento e os 18 anos de idade, é um grupo populacional tido como tradicionalmente saudável. De facto, se atendermos à evolução de alguns indicadores, como a mortalidade ou alguns tipos de morbilidade, poderemos constatar uma enorme melhoria ocorrida nas duas últimas décadas.
Contudo, ao abordarmos a saúde numa perspetiva mais ampla – que inclui o bem–estar, segurança, autoestima, felicidade e qualidade de vida –, essa avaliação patenteia, através de vários dados existentes, situações problemáticas, desigualdades, iniquidades e existência de riscos e ameaças graves e algumas delas crescentes, como a droga ou a violência, ao bem-estar das crianças e adolescentes portugueses.
Os problemas que afetam a saúde e a qualidade de vida dos indivíduos em idade pediátrica – que, além de serem o futuro do país, são presente e nesse presente têm necessidades de vária ordem –, estão cada vez mais relacionados com o ambiente, os riscos, os comportamentos das crianças e dos adultos, o stresse e muitos outros fatores que, inegavelmente, já não se resolvem através de uma simples prescrição ou ato médico, mas sim com uma abordagem pluri- e transdisciplinar, conducente a um exercício pleno da cidadania, da liberdade e da responsabilidade, com respeito pela pessoa, pela família e pela sociedade em geral, numa palavra, pelos valores perenes da humanidade – maus-tratos, acidentes, problemas das crianças de rua ou pertencentes a minorias étnicas, migrantes, doenças decorrentes da poluição, consequências da violência, influência dos meios de comunicação social, novas tecnologias, provimento das necessidades da criança com doença crónica ou deficiência, e muitos outros, são bem exemplos de situações em que o que está em causa é precisamente um défice dessa mesma cidadania.
Portugal ratificou em 1990 a Convenção das Nações Unidas, verdadeiro “farol” dos direitos das crianças e jovens, em que se faz apelo a ações que permitam, mais rapidamente do que a lenta evolução dos ventos da História, implementar esses direitos e torná-los apanágio das consciências, das atitudes e dos comportamentos, numa vivência salutar da democracia.
Existem no nosso país múltiplas instituições – governamentais e não governamentais, públicas e privadas –, que se dedicam à promoção do bem-estar das crianças e suas famílias. Assim, todos os dias se desenrolam inúmeras atividades em prol do bem-estar infantil e juvenil, da saúde à educação, da segurança social à justiça, passando pelas autarquias, agentes da autoridade, meios de comunicação, etc.
No entanto, parece-nos faltar um verdadeiro “cimento” entre essas muitas instituições e organismos, uma estrutura crítica e ativa que facilite os canais de comunicação e a informação, promova o diálogo e os conhecimentos, e evite duplicações de esforços em alguns setores ou lacunas em outras áreas. Tais objetivos tornam-se fundamentais quando se encaram problemas “reais” do dia-a-dia como, por exemplo, a violência e os traumatismos e lesões acidentais. Todos os outros problemas citados são também, em maior ou menos grau, responsáveis por custos pessoais, familiares e sociais, afetivos e económicos, numa palavra, constituem ameaças à estabilidade do país por atingirem as suas raízes mais promissoras mas, ao mesmo tempo, mais vulneráveis, que são as crianças e os jovens, bem como afetando o bem-estar das famílias.
Urge assim desenvolver ações e atividades que permitam coordenar e organizar, em torno de um ideal comum que é o cumprimento da Convenção dos Direitos da Criança, os esforços, os recursos humanos e materiais, e as vontades e energia da sociedade civil, quer enquanto conjunto de cidadãos individuais, quer na forma de expressão organizada ou associativa.
Assim, vimos propor a Vossa Excelência, Senhor Presidente da Assembleia, que seja criada uma estrutura – como uma Provedoria da Criança – que permita articular as diversas ações já existentes, promover a formação e estudos de investigação em áreas carentes e desenvolver programas e atividades em áreas em que subsistam lacunas, bem como denunciar situações em que as crianças e os adolescentes são alvo de exploração ou em que os seus direitos são violados, encaminhando as queixas para as autoridades competentes.
Esta estrutura só poderá ser útil ao país se for independente do poder político, embora emanando dele, atuando com ele e servindo como sua consultadoria. Não se pretende, assim, que esta estrutura ou os seus membros sejam caixa-de-ressonância de qualquer poder, nem local privilegiado de qualquer oposição. Esta estrutura deverá, sim, ser a consciência moral de todos os portugueses na defesa dos Direitos da Criança, tendo a população pediátrica como único alvo de compromisso. Trabalhando com a sociedade civil e com o Estado em parceria, pretende-se criticar o que está mal, elogiar o que está bem, mas sempre de forma construtiva, dialogante e mediante um exercício pleno da democracia partilhada e participativa, emblemas dos ideais que presidem às sociedades onde o humanismo e o respeito pelos próprios e pelos outros constituem valores sagrados, e avaliar, por exemplo, o impacte da legislação sobre a população infantil e juvenil.
Estamos certos, Senhor Presidente da Assembleia, que esta proposta cabe inteiramente nas ideias e ações que Vossa Excelência sempre defendeu e expressou, bem como no espírito do Parlamento a que Vossa Excelência preside. As crianças e jovens de Portugal saberão agradecer e reconhecer a bondade desta iniciativa. As gerações futuras, na sua tolerância e abertura, compreenderão se não conseguirmos, mas nunca nos perdoarão por não ousarmos sequer tentar.”
Fica o desafio, 20 anos depois… quase como o nome do livro que Alexandre Dumas escreveu como “sequela” de “Os Três Mosqueteiros”…