A propósito de uma discussão e de uma notícia do “The Guardian” sobre interceções eletrónicas
1. Os tempos atuais vão revelando, para surpresa de muitos, que muitas ideias que se julgavam ultrapassadas mais não estavam do que em hibernação.
Assisti recentemente a uma discussão jurídica sobre instrumentos e veículos de vigilância eletrónica, e respetivas garantias e regras de controlo judicial sobre a privacidade, que me deixou estarrecido.
O que me interpelou nem foi tanto a diferença de mecanismos jurídicos de controlo – ou a sua falta – mas, verdadeiramente, a forma como muitos dos intervenientes defendiam a fé cega que, nesta matéria, deveriam merecer as autoridades, fossem elas judiciais, governamentais, policiais ou, inclusive, as agências de informação.
E falo de fé porque, precisamente, foi dela que se falou como argumento jurídico poderosamente novo.
Assim, ante uma generalizada preocupação expressa por juristas de certos países – por exemplo da Itália, Espanha e Portugal – com a possibilidade do uso excessivo e desproporcional de tais instrumentos de vigilância eletrónica, e bem assim com a necessidade de clarificar, a nível transfronteiriço, a forma de intervenção das autoridades judiciárias na apreciação do seu uso, foi-lhes contraposto, de maneira algo ingénua mas nem por isso menos paradoxal, o conceito de “boa-fé” como critério fundamental na avaliação do uso irregular e não autorizado de tais métodos.
2. A história molda quase sempre a cultura e a expressão dos valores políticos e sociais das diferentes sociedades, e isso reflete-se naturalmente nas constituições e leis que adotam.
Acresce que, depois da ii Guerra Mundial, convenções, pactos e cartas de direitos internacionais têm, de alguma forma, evitado – até agora – muitas tentações de retrocesso que sempre vão acontecendo em função das peripécias que a vida política de cada país subscritor atravessa – os princípios que transmitem tais cartas fazem parte da cultura comum que a todos obriga.
O que me surpreendeu, portanto, foi a forma cândida com que aquele argumento foi lançado para a discussão como panaceia geral para legitimar a posteriori o uso não autorizado – pelo menos em países de percurso incidental dos vigiados – de tais métodos de investigação e controlo.
3. Tal intervenção fez-me recordar um episódio já antigo relacionado com uma visita de estudo ao sistema judicial português organizada pela MEDEL – uma associação europeia de juízes e procuradores –, que ocorreu quando um juiz alemão se deparou, abismado, com o catálogo de nulidades absolutas do nosso Código de Processo Penal.
Perante tal espanto, logo um experimentado magistrado espanhol lhe respondeu: “Sabes, nos nossos países, as leis espelham e regulam o nível de desconfiança que os cidadãos têm do poder e das autoridades. Daí as leis serem complexas e morosas.”
Queria o magistrado espanhol – não sem algum cinismo – explicar que, no sul, íamos procurando aprender com a história.
4. Hoje, lendo o “The Guardian”, percebi melhor, todavia, o conceito de boa–fé de que falava o tal jurista.
Parece, com efeito, que, doravante, no Reino Unido – certamente pela fé que merecem as autoridades –, as possibilidades de realizar controlos e interceções eletrónicas serão ampliadas e menos controladas.
“Em Nome do Pai” é um filme já antigo de Jim Sheridan que, em meados dos anos 90, vi com assombro.
Conta um episódio real e procura retratar o resultado dramático da demasiada fé que então – nos anos 70 – mereciam as autoridades de investigação britânicas aos tribunais desse país.
Resta-nos, pois, ter fé.