José Avillez. ‘Confesso que não me dava muito jeito ganhar a primeira estrela Michelin no Mini Bar’

José Avillez. ‘Confesso que não me dava muito jeito ganhar a primeira estrela Michelin no Mini Bar’


Portugal vai duplicar o número de restaurantes com as conceituadas estrelas Michelin. José Avillez já sabe que o seu Belcanto não receberá a terceira, mas a bolsa de apostas inclui um outro restaurante seu como potencial galardoado. Conversámos com o chefe sobre o períodoque antecede a importante cerimónia.


O incidente da passada sexta-feira no Cantinho do Avillez, no Porto, já lá vai. O chefe, que este fim de semana participou num encontro gastronómico em Israel, desvalorizou a ação de vandalismo que foi alvo o seu restaurante no Porto por um movimento pró-Palestina contra a participação nesse evento. Agora é altura de regressar a casa e preparar-se para uma semana que é, tendencialmente, de alguma ansiedade para os chefes de elite de todo o mundo. Na quarta-feira serão anunciados os restaurantes que vão integrar o Guia Michelin e receber as famosas e importantes estrelas.

Sentámo-nos à mesa com José Avillez há um par de semanas, não para comer, mas sim para conversar. Ainda envergava a jaleca de cozinheiro, porque tinha acabado de servir 160 pratos de xerém de bacalhau com amêijoas no Gourmet Culinary Extravaganza, no Hotel Conrad, no Algarve, um encontrou que juntou 11 chefes de cozinha, que tinham, no total, 19 estrelas Michelin._Falámos sobre os últimos meses de trabalho, desde que inaugurou o seu mais recente projeto, o Bairro do Avillez, em Lisboa, e da pressão (ou falta dela) quando chega esta altura do ano em que aparecem as apostas dos restaurantes que serão premiados com estrelas pelo conceituado Guia Michelin.

As notícias das últimas semanas dão conta de que Portugal, que tem hoje 17 estrelas – três restaurantes com duas estrelas e 11 com uma estrela – irá duplicar o número de galardões. Ainda assim, e de acordo com o diretor de relações externas do Guia Michelin, Ángel Pardo, e da diretora comercial, Mayte Carreño – em conversa com a imprensa espanhola – ainda não será desta que haverá um “3 estrelas” em Portugal. Isso faz com que José Avillez esteja um bocadinho menos ansioso? O chefe tem já o seu Belcanto classificado com duas estrelas e agora tem a certeza que não receberá a terceira. Mas Avillez, de 37 anos, tem ainda mais seis restaurantes e há um deles, o Mini Bar, que está na lista dos potenciais vencedores da primeira estrela. “Se vier, vem e haveremos de saber lidar com isso!”

Conte-nos como têm sido os últimos meses desde a abertura em agosto do Bairro do Avillez. Nesta altura sente-se mais cozinheiro ou gestor?

Um chefe, em si, já é um gestor de cozinha. Claro que pode alargar a sua ação e passar a ser gestor de uma empresa. Eu já vou tendo muito apoio nessa área, porque somos já quase 290 pessoas a trabalhar. Trabalho muito, mas não mais do que trabalhava há três ou quatro anos porque estamos cada vez mais organizados. O primeiro mês do Bairro do Avillez foi mesmo muito difícil: houve uma altura em que achei que ia ceder, porque eram três horas de sono por noite durante um mês inteiro. Mas correu bem e hoje estamos a dar 750 refeições por dia. Tem sido uma loucura boa. São quase 100 pessoas a trabalhar nesse projeto.

A planificação tem de ser uma ferramenta fundamental, tanto na cozinha como fora dela. Prepara os menus com muita antecedência?

Sim. Precisamos de ter os menus pensados e criados a 80 ou 90 por cento até para conseguir desenhar a própria cozinha. Costumo dizer que conseguimos criar 80 por cento do conceito e depois é o cliente que decide os outros 20 por cento. Estamos um bocadinho nas mãos do primeiro mês, de como é que o cliente vai agarrar o restaurante, de como vai vivê-lo e nós temos que nos adaptar a isso. Eu tenho mil pratos na minha cabeça que vou disparando para os vários espaços, porque a criatividade do grupo ainda está muito centrada em mim. Estou agora a construir um laboratório onde vamos ter mais pessoas responsáveis por isso: queremos ter um espaço físico para que as pessoas comecem a transmitir as suas ideias e a trabalhá-las. De facto tem que ser com planeamento, para sabermos reagir e evitar possíveis erros, como  a mudança de um produto ou da sazonalidade.

Em todos os seus projetos gastronómicos, uma das marcas da sua cozinha é a ligação à identidade portuguesa.

Eu procuro, acima de tudo, o sabor. Depois do sabor é que vem a nossa identidade, a nossa alma. Mas por mais ideias que tenhamos, por mais conceitos que pensemos e maneiras de empratar, se não tiver sabor… Diz-se que a cozinha é uma arte: é, pelo menos, uma expressão artística do sabor, das texturas e das temperaturas para conseguirem criar contraste. No sabor está a conjugação dos ingredientes, a harmonia, e aí faz uma diferença enorme ter-se 10% de um ingrediente e 90% de outro. Às vezes há produtos que achamos que não ficam bem juntos, mas se for só 10% para temperar pode fazer diferença! A cozinha é todo esse equilíbrio.

Como um laboratório químico?

Tem muito de intuição: saber o que é bom, pôr na boca, provar. Há uma grande diferença entre o muito mau, o mau, o aceitável, o bom, o muito bom e o excelente. Se os cozinheiros acham que o bom é igual ao excelente, estamos tramados, porque há um caminho muito grande a percorrer. Tentamos a perfeição para ficar na excelência, só que a perfeição não existe.

Também pode ser preciso chocar, ousar, para se chegar a essa excelência?

Pode ser, sim. Comparando com outra arte: um pintor pinta um quadro e não precisa de ser bonito, precisa é de transmitir qualquer coisa. Um arquiteto faz uma casa que tem de ser habitável. Um prato tem que ser para comer! Uma grande ideia, na cozinha, tem que representar sempre muito sabor. E depois os gostos são todos diferentes. Eu sirvo pessoas de 30 ou 40 nacionalidades diferentes e é óbvio que as raízes, o passado, a história de cada pessoa, dá-lhe um registo diferente de paladar. Entre o bom, o muito bom e o excelente, um asiático pode dar mais importância à textura do que ao sabor, ao passo que os europeus ligam muito mais ao sabor do que à textura.

Estamos a poucos dias de saber quais são os restaurantes portugueses que vão ganhar as estrelas Michelin. E, pelo que já foi anunciado, as estrelas vão dobrar.

Dizem que sim, não é?

Sonha muito com estrelas nesta altura do ano?

Não penso muito. Nesta fase temos o Belcanto com duas estrelas, absolutamente confiantes no trabalho que temos vindo a desenvolver, sem o pensamento de perder, mas também sem esperanças nem pensamentos numa terceira estrela. Pelo menos para já.

Tem alguma estratégia para chegar à uma terceira estrela?

Só o tempo é que vai premiar o Belcanto com uma terceira estrela. Conseguimos trabalhar para melhorar, para estar tudo mais afinado, para ser consistente. Mas é um bocadinho incerto o que é isso da terceira estrela – e até a segunda. Não consigo dizer, de A a Z, tudo aquilo que fizemos para ter uma segunda estrela. Nem a primeira! A qualidade dos ingredientes, a criatividade e a consistência são três pontos muito importantes na análise de um inspetor do Guia Michelin. Mas a consistência, ao longo dos anos, faz-nos pensar que podemos  passar de duas para três estrelas.

A gastronomia portuguesa está a ser cada vez mais reconhcida. Parece que nos estão a descobrir agora.

E a identidade hoje é muito importante. Os inspetores esperam ver um restaurante em Lisboa diferente daquele que veem em Paris, em Madrid ou Copenhaga. Há uns anos, abríamos o Guia e víamos o robalo com cogumelos, o salmonete com as azeitonas… era tudo igual na Bélgica, Suíça, França, Espanha. Já perceberam que há a identidade, a alma do país de cada chefe.

Acontece-lhe muitas vezes espreitar lá de dentro da cozinha cá para a sala para tentar adivinhar quem é que daqueles clientes pode ser inspetor do Guia Michelin?

Às vezes temos algumas suspeitas. Mas cozinhamos sempre para todos de forma igual, o melhor que conseguimos. É a única maneira que temos de não viver stressado – ou mais stressados ainda! – e dormir descansado. O pedido que entra na cozinha é para sair o melhor que nós sabemos. Num dia é um inspetor, mas no outro dia não é inspetor nenhum, mas é uma pessoa que paga o mesmo e devemos-lhe o mesmo respeito e a dedicação.

No meio desta contabilidade de estrelas, o seu Mini Bar entra na bolsa de apostas como sendo um dos restaurantes que pode vir a ganhar a primeira estrela Michelin.

Já me disseram, sim. Mas não conto muito com isso. E confesso que até não me dava muito jeito em termos de organização ganhar essa primeira estrela. O restaurante funciona muito bem assim e tem um nível de preço para o nível da expectativa que tem. Se passar a ter uma estrela, vai ter uma expectativa maior e eu não posso aumentar os preços porque estou num target que me separa do Belcanto e de outros projetos. No entanto, se vier, vem e haveremos de saber lidar com isso.