A propaganda dos silêncios


Duas semanas depois de ser capa do semanário deste grupo, a deputada Isabel Moreira lança apelos contra este mesmo grupo. Linda demonstração de coerência


Em 2016, “Mein Kampf” de Adolf Hitler foi reeditado na Alemanha.

A obra, escrita em reclusão política, está neste momento esgotada, depois de 70 anos ausente das livrarias.

Quer isso dizer que há uma maioria de alemães de regresso à ideologia nazi? Ou quer isso dizer que há uma maioria de alemães a confrontar-se com o passado do seu país em vez de o apagar da história? Não sabemos. É impossível ter a certeza do reflexo em todo o leitor desde o momento em que se publica algo. Logo, é um risco.

Devia reeditar-se a obra? Ainda assim, creio que sim, porque esquecer um erro é a maneira mais fácil de o repetir.

Quando a Alternativa para a Alemanha, um partido nacionalista, vai subindo nas sondagens, talvez seja mais importante que nunca relembrar a barbárie que a extrema-direita trouxe à nação germânica e ao continente europeu. Talvez.

O Conselho Central Judeu de alemães não se opôs à republicação. Considerou, aliás, que “contribuiria para desacreditar a ideologia desumana de Hitler e contrariar o antissemitismo”.

Quando a questão passa da literatura para o jornalismo, as facas afiam-se. Primeiro, porque se lêem menos livros. Segundo, porque a comunicação social está, para o bem e para o mal, instântanea.

Nos Estados Unidos da América, o candidato que só era apoiado pelo jornal do Ku Klux Klan e por um diário local de Las Vegas venceu as eleições. Publicações que não tinham tradição de endorsement pronunciaram-se contra a candidatura de Donald Trump. Mesmo assim, o populista loiro ganhou a presidência norte-americana.

Este fenómeno leva a imprensa, necessariamente, a repensar a vidinha. E sobre esse fenómeno convém conversar com quem consegue debater sobre jornalismo sem (1) insultar jornais, como faz Marco Capitão Ferreira, e (2) sem achar que a solução para os jornais é o seu encerramento, como faz a deputada Isabel Moreira.

É muito irónico que, duas semanas depois de ser capa do semanário deste grupo, Isabel Moreira faça apelos contra este mesmo grupo. Uma linda homenagem à coerência política.

Numa reação à eleição de Donald Trump, o Partido Nacional Renovador interrompeu um debate do LIVRE sobre a eleição do novo presidente dos Estados Unidos. No dia seguinte, este jornal fez capa com as reações do LIVRE. Ainda nessa semana, este jornal fez capa com declarações do líder dos nacionalistas e foi acusado de “propaganda ao ódio” e “propaganda fascista”, entre outras coisas. Na mesma peça havia contraditório de um responsável do Bloco de Esquerda – e bem.

Com a emergência de populismos portodo o globo, o debate sobre a cobertura mediática a fazer é fundamental. Quando jornalistas invocam a “objeção de consciência” para não cobrir o PNR, esse debate tem de ser feito e há questões que se levantam.

A objeção de consciência também serve para não cobrir o PCP? É que se “não queremos cá o islão” vai contra a liberdade religiosa, um candidato presidencial do Partido Comunista não rejeitar comparações com a Coreia do Norte é o quê? Um tributo à liberdade e à democracia?

O PNR é um partido legalizado e vai a eleições. No dia em que o eleitor for chamado às urnas, queremos que ele esteja o mais informado possível, ou não?

Queríamos que os americanos soubessem que Donald Trump achava que “todos os mexicanos são violadores”, ou queríamos que votassem na ignorância?

Queremos que os alemães saibam que a Alternativa para a Alemanha tem posições xenofóbas, ou deixamo-los votar às cegas?

Tal como é impossível saber com toda a certeza qual a verdadeira razão para “Mein Kampf” esgotar na Alemanha, também é impossível saber se as entrevistas do líder do PNR garantem mais apoios que repúdios.

Pessoalmente, penso que a melhor maneira de uma sociedade não cair nos extremos é denunciá-los; o silêncio também pode tornar-se um modo de propaganda e aí, novamente, é meio caminho andado para os extremos regressarem.

Não cobrir aquele que discorda de nós por ter medo que o eleitor também venha a discordar não é muito democrático nem demonstra grande fé na nossa cidadania. Preservemo-la.