Ainda profundamente preocupado (embora não demasiado surpreendido) com a vitória de Donald Trump nas eleições, e antevendo nuvens muito negras e efeitos “sistémicos e de dominó” na Europa, podendo criar cenários próximos do “entreguerras” dos anos 30 do século passado, dei comigo a pensar neste assunto quando uma paciente minha, na quarta-feira passada, entrou no consultório com uma Barbie. Estando tudo ainda centrado no “choque e pavor” dessa madrugada, a pergunta acima irrompeu na minha mente, sobretudo comparando com o desfile das girls que acompanhavam o candidato eleito.
Por outro lado, muita coisa se tem dito sobre a boneca Barbie, culpando-a de todos os males do mundo como a anorexia nervosa, a frivolidade de algumas adolescentes ou quase os terramotos de Itália ou os furacões do Haiti. Não sei o que os leitores pensam da Barbie, mas sei o que muitas crianças pensam da Barbie.
Nesse dia, ao cogitar sobre o assunto enquanto passeava a minha cadela, a Tenrinha, conversei com ela – como sempre faço – e concluímos que, porventura, esta mulher, a Barbie, merece uma “reparação histórica”.
A história da Barbie, de seu nome Barbara Millicent Roberts, é antiga, ao contrário do que muita gente pensa. Barbara tem gerado, ao longo da sua vida, já com 57 anos, amores e desamores, paixões e ódios, e até atribuições de responsabilidades em fenómenos sociais. Amada ou execrada, não deixa ninguém indiferente, o que, já de si, é curioso. Votaria ela em Trump?
Barbara é amada e odiada. Curiosamente, as crianças – que têm um certo sentido para suspeitar do que não é muito bom para elas – têm por ela um carinho especial. E será por acaso que os meios mais machistas lhe retiram a verdadeira essência, reduzindo-a a um símbolo sexual, enquanto em países onde os fundamentalistas islâmicos estão no poder a sua presença é proibida?
Entre nós, já houve quem estudasse afincadamente esta rapariga (enfim, esta mulher de meia-idade) e dissesse que ela simplesmente “não existia”. Ou que as adolescentes, ao tentar imitá-la, caíam na armadilha da anorexia nervosa e noutras tantas coisas más – perdoem-me algumas senhoras professoras doutoras que escrevem isso, mas estão completamente enganadas sobre o que é a causa da anorexia nervosa… mas adiante.
Símbolo do capitalismo para uns, do consumismo para outros, da frivolidade total e absoluta para outros ainda, os mais básicos acham que, como é loura, deve ser burra, ao que acresce o facto de ser mulher (ah! a misoginia acaba sempre por vir ao de cima… welcome, Mr. Trump!), ainda por cima aparecendo com trajes reduzidos e provocadores. Resumindo: Barbara Millicent Roberts deveria, para alguns, ser banida e ostracizada.
O que ainda me dá mais vontade de rir é pensar que muitas das pessoas (designadamente mulheres, algumas mais velhas do que Barbara) que defendem e defenderam afincadamente a igualdade de direitos entre homens e mulheres, o feminismo e o direito da mulher a não ser rotulada pelo que veste ou pelos seus comportamentos são as primeiras a colocar em Barbara as piores causas das piores consequências. Até chegam a dizer que, com aquelas formas, nem sequer poderia ter menstruação!
Com franqueza, Barbara, isso não se faz às crianças – que péssimo exemplo! Mesmo adaptando-se ao politicamente correto com o tempo, existindo já nas versões branca e preta, com os olhos em bico ou redondos, mais amiga do ambiente ou do desperdício, Barbara sobrevive e a rapaziada (leia-se: criançada) gosta dela. Há cerca de 15 anos até teve de aderir à causa das pessoas com deficiência, não fosse ferir o politicamente correto.
O “pai” de Barbara, quando a criou, não imaginaria que, mesmo já cinquentenária, a “filha” teria mais fãs do que o “rei” Elvis Presley.
Foi nos anos 50 do século xx que o casal Handler, fabricantes de brinquedos, observando a sua filha Barbara a brincar com bonecas de papel, e como ela as personificava como adultas, depois de conhecerem uma boneca alemã, a Bild Lilli, que tinha “formas perfeitas e corpo de mulher”, decidiram criar a sua própria boneca, dando-lhe o nome da filha: Barbara, ou seja, Barbie. Começou por existir em duas versões, loira e morena, mas o público exigiu o “arianíssimo” loiro.
O que todavia muitas vezes se esquece, e isso sim é merecedor de referência, é que Barbara Millicent Roberts revolucionou a vida das mulheres, não direi tanto como a pílula – seria manifesto exagero –, mas no mesmo sentido. Quando as crianças do sexo feminino viam o seu futuro nas brincadeiras, apenas se viam como mães, futuras mães e apenas mães, Barbara veio dizer–lhes, alto e forte, nos anos 50 do século xx: “Minhas pequenas amigas, vocês vão ser uma coisa que os vossos pais não vos dizem: mulheres. E as mulheres não são apenas mães. Ligam ao corpo, velam pelos vestidos, arranjam-se, vão ao cabeleireiro, gostam de mundanismos e frivolidades. Who cares? São mulheres. Querem mais do que maternidade: querem libertação, igualdade de género, sexo, erotismo, sedução, igualdade, poder. E vocês vão sê-lo e tê-lo! Não pensem só em bonecos que são filhos ou bonecas que são mães. Olhem para mim e sigam-me!”
Quando finalmente se apaixonou por Ken Carson, Barbara mostrou às meninas pequeninas que se pode ter um homem sem se pensar apenas que ele será o “futuro pai dos filhos” – “depravada”, disseram uns, “ele deve ser gay”, acrescentaram outros, porventura invejosos de não estarem no lugar do macho que tinha direito àquela mulher. Desculpem… tudo isto me dá uma enorme vontade de rir, uma vontade de rir da ironia da História.
Esquecendo todo o mundo de exploração, sensacionalismo, oportunismo, comercialização e estupidez que alguns adultos cultivam à volta dela e transmitem às crianças (e, numa sociedade de consumo e numa economia de mercado, a exploração do brinquedo até às últimas consequências) – o que nada tem a ver com o seu nascimento e o que ele significa –, fica aqui, a propósito da eleição do predador e misógino Trump, a minha homenagem a uma grande mulher, com mais de 50 anos, que lutou pela emancipação feminina e fez por isso muito mais do que outras que aparecem na boca dos media: Barbara Millicent Roberts – Barbie, para os mais íntimos…
Com toda a sinceridade, creio que nem ela votava Trump, nem Trump gostaria dela. E se considerarem que Ivanka, Ivana, Melania ou outra qualquer dessas “escort girls” do presidente eleito dos EUA se lhes equipara, estão histórica e factualmente equivocados…´
Pediatra. Escreve à terça-feira