Uma mutação nova a cada 50 cigarros, ou 150 num ano: é esta a marca do tabaco no ADN de um fumador. Ludmil Alexandrov, o cientista por detrás da contagem, tem 30 anos e já foi considerado um dos jovens investigadores mais promissores. Formou-se em Ciências da Computação, mas preferiu a investigação em biomedicina ao mundo das startups e das apps, nos últimos dias tão em voga em Lisboa. Numa entrevista ao i, fala desse outro lado da programação.
Terminou o curso de Ciências da Computação em 2007. Como acaba a fazer investigação em biomedicina?
A minha formação inicial foi em ciência dos computadores, mas descobri muito cedo que preferia os problemas biológicos.
Lisboa recebeu a Web Summit. Habituamo-nos a pensar nos geeks como pessoas mais interessadas em desenvolver aplicações e negócios digitais. O que o levou para outro caminho?
É verdade que a maioria pensa nisso. Para mim, foi sempre foi claro que não iria por aí. No desenvolvimento de software, uma pessoa programa algoritmos e máquinas para fazerem aquilo que queremos que façam. Para um biólogo computacional, a área em que me especializei, o objetivo é perceber como a evolução programou as células e usar esse conhecimento para reprogramar as células, os órgãos e os organismos para fazer aquilo que queremos que façam. Pareceu-me mais entusiasmante.
Como começa a estudar o cancro?
Foi durante o doutoramento no Wellcome Trust Sanger Institute. Hoje em dia, uma grande parte da investigação em torno da genética do cancro precisa de ferramentas poderosas de computação e novos algoritmos. À medida que aumentam os dados de doentes, a investigação computacional acaba por tornar-se uma componente essencial do trabalho dos cientistas.
Como conseguem mapear as mutações genéticas associadas à doença?
Sequenciamos o ADN de doentes e dos tumores e usamos esses dados para detectar mutações, variações no ADN. Por vezes são precisas semanas para desenvolver métodos necessários para analisar os dados ou para perceber os resultados que estamos a ter. São petabytes de informação.
Quais foram as suas maiores descobertas até agora?
Consegui fazer o primeiro mapa do tipo de mutações que causam cancro em humanos, entre os quais processos mutacionais nas nossas células com o funcionamento idêntico ao dos relógios. Neste artigo mais recente identificámos os processos através dos quais o tabaco causa cancro. O grande impacto vai ser ao nível da prevenção: se conseguirmos perceber os mecanismos por detrás do cancro, podemos desenvolver estratégias melhores para intervir mais cedo.
Como funcionam essas mutações que comparam a relógios?
São processos que existem em todas as células e fazem com que estejam sempre a surgir novas mutações, fruto do funcionamento normal das células, por exemplo como resultado de ter sido gerada energia para as alimentar. Basicamente, isto significa que temos um nível relativamente estável de novas mutações a cada ano. Por exemplo, uma célula do cólon sofre 100 mutações por ano, o que significa que uma pessoa com 60 anos tem 6 mil mutações em cada célula do intestino.
A menos que surjam fatores externos. No estudo sobre o tabaco, um desses fatores, qual foi a conclusão mais surpreendente?
Conseguimos identificar os diferentes mecanismos através dos quais o tabaco causa mutações associadas ao cancro, desde danificar diretamente o ADN ao facto de ativar os processos mutacionais dentro das células, o que mostra que tem diferentes impactos. Por exemplo, os órgãos que não estão diretamente em contacto com o fumo inalado não têm as mesmas marcas que encontramos nos pulmões. E descobrimos que o tabaco parece acelerar o ritmo das tais mutações que se acumulam ao longo da vida nas células dos fumadores.
E é por isso que os fumadores têm um risco de maior de desenvolver diferentes cancros?
Sim. Quanto mais mutações uma célula tem, mais hipóteses há de uma dessas mutações ser um gene associado ao cancro e levar à doença.
Mas há um limite de mutações que uma célula consegue suportar antes de se tornar cancerígena?
Há cancros com muitos milhares de mutações nos seus genomas e outros com apenas algumas centenas. É muito variável. Sabemos que quanto mais houver, maior o risco, mas não há um limite que implique que a pessoa, a partir dali, vai ter necessariamente a doença.
Descobriram que alguém que fume um maço de tabaco por dia tem 150 novas mutações por ano. O que seria normal?
Varia de pessoa para pessoa, mas nas células dos pulmões, onde encontrámos essa taxa de novas mutações nos fumadores, num ano, os processos celulares normais levam-nos a acumular menos de 20 mutações, o que significa que estas mutações devem explicar a grande maioria do risco acrescido de os fumadores terem cancro do pulmão.
Além do tabaco, que outros fatores levam a mais mutações no nosso ADN do que seria expectável? No ano passado, a OMS alertou para o risco de comer carne vermelha – é o mesmo efeito?
Até agora sabemos que as mutações aumentam com a exposição a radiação, exposição à luz ultravioleta do sol, ao consumo de produtos que contenham aflotixinas e outros produtos tóxicos. Em relação à carne vermelha, ainda não temos a certeza se o efeito é este.
Haverá sempre fumadores que não têm cancro e pessoas que nunca fumaram e têm. Os vossos resultados ajudam a perceber melhor este paradoxo?
Há sempre um elemento de sorte no cancro. Podemos pensar no tabaco como jogar à roleta-russa. Quanto mais joga, maiores as hipóteses de as mutações acertarem nos genes certos e de a pessoa desenvolver a doença. Isto é o que sabemos. Mas, apesar disto, haverá sempre pessoas com sorte que fumam muito e as mutações não acertam nos genes. Como haverá sempre pessoas com menos sorte que nunca fumaram mas em que as mutações que resultam de processos celulares aleatórios acertam nos genes associados à doença.
Não é estranho um cientista falar de sorte?
Pelo contrário. A sorte, o acaso é algo que podemos classificar dessa forma porque tem em conta as probabilidades. As hipóteses de ter um carcinoma das células escamosas do pulmão são 112 vezes mais baixas nos não fumadores. Isto significa que a maioria das pessoas com este tipo de cancro são fumadoras, mas também que, por azar, uma pessoa pode ter este tipo de cancro sem nunca ter fumado.
Em 2014 foi distinguido pela “Forbes” como uma das 30 mentes mais brilhantes com menos de 30 anos. Os investigadores jovens têm hoje mais espaço para mostrarem o que valem?
O ambiente académico continua a ser muito duro tanto para os jovens como para os cientistas com mais experiência. Há muita pressão para nos candidatarmos a bolsas todos os anos e para publicarmos o maior número de artigos possível. Isto faz com que a ciência seja uma área altamente stressante e competitiva. Para um cientista mais novo, continua a ser difícil seguir as próprias ideias porque o financiamento acaba por ser ainda mais limitado.
Como conseguiu destacar-se tão cedo nesse tipo de ambiente?
Deixei que as ideias me guiassem e tentei não perder a noção mais global daquilo que quero fazer, da big picture. Mas só consegui tornar-me independente na investigação nos últimos dois anos.
Nasceu na Bulgária. Tem planos para regressar ao seu país de origem?
A minha família veio para os EUA quando eu tinha 17 anos e estudei cinco anos em Inglaterra. Neste momento não faria sentido, a minha família vive nos Estados Unidos. Além disso, seria muito difícil, se não impossível, fazer este tipo de investigação na Bulgária devido à falta de recursos e da infraestrutura científica e ao financiamento.
Países pequenos como Portugal têm tido dificuldade em aumentar o financiamento da investigação científica. Como vê o desafio de convencer os governos a destinar mais dinheiro à ciência?
A única forma de os países pequenos competirem no mercado global é através de inovação. E a única forma de ser realmente inovador é ter ciência de ponta devidamente financiada.
Está, pode dizer-se, ainda a começar. A que perguntas gostava de conseguir responder um dia?
Gostava de perceber de que forma a obesidade aumenta o risco de diferentes tumores, como fizemos para o tabaco.
Como vê a eleição de Donald Trump? Há receios na comunidade científica americana?
Foi uma surpresa para a maioria das pessoas. Independentemente das opiniões de cada um, acho que agora há um presidente eleito e que o país precisa de começar lentamente a recuperar das divisões da campanha. No que diz respeito à ciência, quero acreditar que tanto republicanos como democratas percebem a sua importância e que vamos ter cada vez mais progressos no sistema científico.