Populismo. Quem semeia globalizações colhe populismos

Populismo. Quem semeia globalizações colhe populismos


Os populismos que emergem no planeta revelam um descontentamento que dificilmente será estancado.


A fotografia correu o mundo. Hillary Clinton em cima de um pequeno palanque e separada de centenas de pessoas por um corrimão. Para além dele estavam muitas mulheres e jovens de classe média, de costas, a tirar selfies em que apareciam com a candidata em fundo. Todos os estudos eleitorais revelam que a candidata democrata ganha, em termos eleitorais, na classe média, mulheres, negros e hispânicos. O grande baluarte de Donald Trump é a classe trabalhadora branca que se sente espoliada de rendimentos e empregos devido ao processo de globalização económica e financeira. No Reino Unido, como na França, estas vítimas da globalização deram a vitória ao Brexit e à Frente Nacional.

O grande inquisidor tinha Cristo renascido à sua frente. Estas são as palavras que lhe dedicou, segundo o que o romancista Fiodor Dostoievski relata em “Os Irmãos Karamazov”: “És Tu? És Tu– Como não recebeu resposta imediata, acrescenta rapidamente: – Não respondas, cala- -Te. O que poderias dizer-me? Sei bem o que me dirias. Também não tens direito de acrescentar seja o que for àquilo que foi dito por Ti anteriormente. Porque vieste incomodar-nos? É que vieste incomodar-nos e Tu próprio sabe–lo muito bem. Sabes o que Te vai acontecer amanhã? Não sei quem és nem quero saber: que sejas Tu ou apenas uma aparência d’Ele, amanhã mesmo condeno-Te e queimo-Te na fogueira como aos pior dos hereges.” Para o grande inquisidor, a situação era fácil de resolver: a vinda de Cristo era inoportuna e, como ele tinha a capacidade de ressuscitar, viria noutra altura que não incomodasse tanto a ordem estabelecida. A sua reação era similar à das elites políticas de hoje à erupção descontrolada do povo e ao exercício sem controlo da democracia. Não deviam poder fazer referendos sobre a Constituição europeia, nem decidir pelos Brexits desta vida, nem sequer votar em milionários de cabelo estranho e ideias piores. A democracia é para ser usada com parcimónia e, quando descamba, é porque os eleitores são ignorantes. A discussão é antiga, e já a ilustrava o poeta Mário-Henrique Leiria, na sua “Discussão” durante o Estado Novo:

“– Desconfio que a democracia não resulta. Juntam-se astronautas, bodes, camponeses, galinhas, matemáticos e virgens loucas e dá-se a todos os mesmos direitos. Isso parece-me um erro cósmico. Desculpa.

Desculpei, mas fiquei ofendido. Que a democracia era aquilo mesmo, e ainda com conversa fiada como brinde, isso sabia eu. Que mo viessem dizer, era outra coisa. Fiquei ainda mais ofendido, até porque não gosto de erros cósmicos. Acho um snobismo.

– Eu sou democrático –, rugi entredentes, como resposta. – Tenho amigos no exílio, todos democráticos. Foram para lá por serem democráticos. É um sacrifício que poucos fazem, ir para o exílio e ser professor universitário exilado e democrático. Eras capaz de fazer isso?

– Não sou democrático.

Não havia resposta a dar, nenhuma. Ele não era democrático, não sabia de democracia. Eu sim, sou democrático, até já quis ir à América, que me afirmaram que lá é que é a democracia. Recusaram-me o visto no passaporte, disseram que eu era comunista!

Já viram uma coisa destas?”

As votações na Europa e nos Estados Unidos mostram uma espécie de esgotamento do modelo democrático em tempos de globalização, como escrevia o editor do “Financial Times” Wolfgang Münchau, “Aconteça o que acontecer na terça-feira, as instituições políticas nas economias ocidentais precisam de responder de uma forma mais eficiente à política de insurreição.” Para o articulista, as grandes responsáveis pela explosão de populismos são a adesão da social-democracia à financeirização da economia e a globalização económica galopante. “Os únicos partidos da Europa que advogam as políticas keynesianas nos nossos dias são a extrema-esquerda e a extrema-direita, uma situação que faz um paralelo em relação aos anos 30”, afirma Münchau, para concluir: “A principal questão não é se uma resposta de política keynesiana estaria economicamente correta. A questão mais importante é que, se o centro-esquerda não oferecer essa resposta, serão os populistas a fazê-lo. A menos que o centro-esquerda regresse às suas raízes keynesianas, penso que há fortes hipóteses de as políticas de insurreição terem sucesso.”

Nestas eleições nos EUA causaram escândalo as declarações do filósofo marxista Slavoj Zizek de que, embora Trump “fosse aterrador”, Hillary Clinton era muito pior, e que uma vitória do primeiro poderia conduzir à derrocada de um sistema bipartidário em que os americanos são forçados a escolher entre os dois candidatos mais impopulares de sempre. A forma de Zizek é, como sempre, totalmente provocatória, mas há muito que ele defende que o populismo de Trump e os fundamentalismos islâmicos são uma má reação a uma justa condenação da situação em que vivemos. E que as pessoas não podem ficar condenadas a escolher entre a manutenção das elites que criaram a globalização e esvaziaram a democracia e os populismos e fundamentalismos de pendor fascista. Seria necessário disputar posições e criar novos sentidos que permitissem a construção de uma política popular e nacional que respondesse aos arautos da globalização e aos defensores do racismo e da xenofobia.