Paulo Moura. ‘Quando estamos com fome, as coisas deixam de ser repugnantes’

Paulo Moura. ‘Quando estamos com fome, as coisas deixam de ser repugnantes’


O antigo repórter do Público explica que viaja com o mínimo e que, nestas circunstâncias, não se pode ser ‘esquisito’ com a comida. Mas houve um caso em que teve de abrir uma exceção…


Imagino que tenha de viajar com bastante dinheiro, para pagar aluguer de carros, intérpretes, dormidas, etc.

A maior parte das vezes sim. As guerras são um ‘desporto’ muito caro. Apesar de quase sempre se passarem em países pobres, pelo menos nas últimas décadas, tudo se torna caro por estar uma guerra a acontecer. O preço de tudo inflaciona: desde um táxi a um tradutor. E no momento em que chega uma televisão americana os preços disparam. Portanto a pessoa tem de levar dinheiro e geralmente é dólares, dinheiro vivo. Claro que isto foi sempre feito com o mínimo de recursos. Se eu pedisse dinheiro para fazer estas coisas de forma confortável nunca as teria feito. Só era possível porque eu fazia as propostas de ir aos sítios com orçamentos miseráveis. Só gastava dinheiro nos tradutores e no que era inevitável. Em termos de hotéis e comida era tudo o mais miserável possível.

E ao fim de algum tempo esse desconforto não começa a ser desgastante?

Começa. Acho que é por essa razão que nem todos os jornalistas gostam de fazer este tipo de trabalho. Mais do que o perigo de estar na guerra e arriscar a vida é o desconforto. Ninguém está disponível para passar dois meses sem dormir numa cama e nunca ter uma refeição. É muito desconfortável e nem sei que consequências terá na minha saúde no futuro. Mas apesar de tudo são exceções, a maior parte do meu tempo não tem sido passado em guerra.

E em termos de comida, já teve de comer coisas repugnantes?

[risos] Quando estamos com fome deixam de ser repugnantes. Coisas repugnantes é o menos. O pior é não teres nada. Na Líbia passaram-se semanas em que a única coisa que se conseguia arranjar era um pacotinho de bolachas para enganar a fome. Na Tchetchénia, em Grozny, durante uma semana não fiz uma refeição.

Porquê?

Havia um único restaurante em toda a cidade, que fazia uns kebabs de carne, mas aquilo tinha um aspeto de tal maneira estranho, e havia tantas valas comuns com cadáveres humanos à volta, que nunca tive coragem de lá ir. Aí voltei a fumar para enganar a fome. Mas curiosamente, quando apanhei boleia dos rebeldes para ir para as montanhas, tínhamos refeições tipo Obelix, com grandes nacos de carne. Os rebeldes alimentavam-se bem.