A ficção de um grande califado espraiado entre terras sírias e iraquianas esvai-se de dia para dia. A sua liderança, de resto, parece não o ignorar. O grupo Estado Islâmico publicou ontem a primeira comunicação pública do seu suposto califa desde dezembro – a partir de então, o grupo perdeu duas grandes cidades iraquianas, as terras na fronteira com a Turquia e quase 20% do seu território. A gravação não tem data, mas parece ter sido feita nos últimos dez dias, assistindo aos primeiros avanços da aliança iraquiana que tenta reconquistar Mossul, cidade onde o próprio Abu Bakr al-Baghdadi anunciou há dois anos a formação do seu califado e onde o seu sonho se pode começar a desmoronar.
“A guerra total e grande jihad que o Estado Islâmico trava por estes dias só fortalece a nossa convicção de que, querendo Deus, isto não passa de um prelúdio para a vitória”, ouve-se na gravação, que nenhum grupo forense verificou ainda, mas que analistas dizem parecer insuspeita e recente. Sem nunca falar concretamente de Mossul – mas sim de Nineveh, a região mais vasta e ancestral – Baghdadi faz o que mais próximo se aproxima de uma admissão parcial de derrota nos comunicados apocalípticos do grupo. “Não batam em retirada”, pede. “Resistir no lugar é mil vezes mais fácil do que fugir em vergonha.”
O comunicado chegou às redes do grupo extremista nas primeiras horas da madrugada em Mossul. No leste da cidade, nos bairros lamacentos de Gogjali, uma das pontas do centro urbano, vivam-se por essa altura também os primeiros momentos de liberdade ao fim de dois anos de domínio do Estado Islâmico. As forças especiais iraquianas entraram lá na quarta-feira, dando o primeiro passo de uma nova e mais complexa fase na conquista de Mossul, em que, para além das armadilhas e redes de túneis espalhadas pela cidade e arredores, se espera que surjam pela frente dezenas de milhares de civis como escudos humanos. Odifícil estará para a frente. Há muito que sugere que os maiores problemas se vão encontrar no centro da cidade, para onde os militantes têm escapado, preparando uma eventual última batalha. “Limpámos os bairros de Gogjali, mas não matámos muitos Daesh”, lamentava ontem um oficial da equipa de antiterrorismo, citado pelo “Guardian”. “Estaremos no centro da cidade em dias”, prometeu.
O ritmo da reconquista parece agora retomar a velocidade dos seus primeiros dias – o Pentágono voltou a dizer ontem que as operações estavam “adiantadas”. A densidade urbana dos bairros de Mossul, no entanto, esconde mais do que novos riscos de segurança. Esta semana começaram a surgir imagens de jovens residentes detidos e manietados por forças iraquianas, que temem que combatentes extremistas se façam passar por habitantes. O“New York Times” descreveu cenas confusas de capturas e libertações praticamente aribtrárias de alguns dos homens de Gogjali, que em dias passaram de habitantes do califado a informadores do exército iraquiano. A Amnistia Internacional diz também ter recebido informações de maltratos e tortura contra a população sunita local, mas não há ainda nada que sugira as matanças sectárias que aconteceram há alguns meses em Faluja.