Trump – uma geração perante o abismo


Como foi possível que um farsante como Donald Trump já tenha estado muito próximo de ganhar democraticamente a presidência dos EUA?


No primeiro volume, “O Paralelo 42”, da belíssima trilogia “USA” – do escritor John Dos Passos, norte-americano de origem portuguesa –, que ilustra a vida nos Estados Unidos do princípio do século xx até à Grande Depressão, um dos personagens, Fainy McCreary, jornalista e defensor da classe trabalhadora, afirma: “Somos uma grande nação, capazes do melhor e do pior (…).”

A América é uma grande nação, com uma história riquíssima de um povo capaz de feitos extraordinários, em muitos casos pioneiro na luta pelos direitos civis e pela democracia.

No entanto, ao mesmo tempo, nela germina e coabita o que existe de mais perigoso e paranoico, mais doentio e ameaçador tanto para as liberdades dos próprios norte-americanos como para o resto do mundo.

A expressão do mal nunca está definitivamente derrotada. Renova-se e transmuta-se, adquirindo novas formas, estímulos e narrativas para se apresentar como a última grande novidade num circo grotesco de estafermos e assombrações que pensávamos definitivamente enterrados.

Voltam sempre o medo, a estupidez, o preconceito, a alienação da sociedade- -espetáculo, a vida do tipo modelo de estação que lhes garantem a freguesia e os fiéis.

Como foi possível que um farsante como Donald Trump já tenha estado muito próximo de ganhar democraticamente a presidência dos EUA?

Entre muitas explicações possíveis, uma é certa, e serve para aferir do sempre inesperado êxito dos demagogos, em Portugal incluído: uma geração de cidadãos e de eleitores já não se “alimentam” de informação, mas sim de infotainment, de espetáculo disfarçado de informação.

Trump fala para os politicamente incultos, mascara-se de “homem do povo” do “tipo que não é político” que “fala sem medo” e que os vai castigar pelas promessas não cumpridas.

O seu discurso é primário, sem ideias ou planos. Trump sabe para quem fala. Hillary Clinton dizia a este propósito: “Mais de metade dos norte-americanos formam parte das massas irracionais que produz o analfabetismo.”

O “New York Times” revela que existem reais preocupações com o exemplo que está a ser deixado aos mais jovens com o baixo nível desta campanha, e conta o caso de um professor que não queria que os alunos vissem o debate da noite passada, tendo em conta o que se passou no encontro anterior.

De facto, é difícil falar da elevação da política, da importância fundamental de votar, do papel de uma cidadania responsável quando o candidato Trump fala das mulheres como objetos sexuais, estimula o ódio contra mexicanos e muçulmanos, goza com os deficientes e se ufana de enganar o Estado.

Hoje, as sondagens indicam uma vitória certa de Hillary Clinton. Trump entretanto, aposta nas teorias da conspiração, que são uma tradição com grande recetividade nos EUA.

Por exemplo, 12 milhões de pessoas – 4% da população – acreditam que o governo dos EUA é dirigido por homens-lagarto e 29% acreditam que Obama é muçulmano. O jornalista de direita Michael Savage, com cinco milhões de ouvintes no seu programa de rádio, afirma que “há dezenas de fotos e vídeos que provam que Obama e Hillary são demónios”.

Trump, macho velho, de pelo amarelo, decadente e burlesco, de fascista na dobra da vestimenta, Górgona Trump, que odeia o homem real e semeia ameaças com as serpentes que Medusa tinha na cabeça, mas a ele lhe saem da boca de línguas bífidas a espalhar veneno, trouxe-nos até muito próximo do abismo.

John dos Passos, Hemingway, Gertrude Stein, Fitzgerald, Eliot deixaram-nos páginas eternas da literatura mundial, em tempos conturbados e ameaçadores, e atribuíam-se a designação de “Geração Perdida”.

Com uma hipotética vitória de Trump, era mais que uma geração que iríamos perder. Tal, porém, não acontecerá. O melhor da América vai uma vez mais prevalecer.

Consultor de comunicação, Escreve às quintas-feiras