Todo o tempo é irredimível: o extraordinário terceiro pseudónimo de Catherine Webb

Todo o tempo é irredimível: o extraordinário terceiro pseudónimo de Catherine Webb


Catherine Webb começou a publicar livros com apenas 14 anos, inicialmente como Kate Griffin. Agora, como Claire North, estreia-se em Portugal com “As Primeiras Quinze Vidas de Harry Ausgust”


O que é o tempo? Do ponto de vista do nosso umbigo, e deixando de parte as respostas que a matemática, a física ou a filosofia têm procurado dar a esta questão, o tempo é aquilo que temos até morrer. A sensação do antes, do agora e do depois, e o seu movimento aparentemente unidireccional, aquilo a que Einstein chamava uma ilusão, é o que, face a inevitabilidade do nosso próprio desaparecimento, dá sentido a cada coisa que escolhemos. E há certamente um conforto, ainda que por hipótese ilusório, nesta sensação de que tudo não acontece ao mesmo tempo.

Being Erica, uma série de televisão canadiana, meio comédia, meio drama, e que passou entre 2009 e 2011, mostrava-nos uma rapariga homónima do título que, com a ajuda do estranho terapeuta, conseguia viajar na sua própria vida, com a vantagem de, a cada regresso ao passado, toda a memória entretanto adquirida se manter. Ou seja, e no fundo, aquilo que todos já desejámos pelo menos um par de vezes quando nos lembramos de um outro momento constrangedor do passado e pensamos que o capital de memórias e crescimento entretanto adquiridos nos permitiria enfrentar bem melhor esses momentos. Na série a conclusão era quase sempre a mesma, isto é, que mesmo regressando ao passado e tentando torna-lo melhor, tudo acaba por acontecer mais ou menos da mesma forma. Anos antes tivemos uma ideia semelhante, mas concentrada num único dia, no brilhante Groundhog Day, com Bill Murray e Andie MacDowell. As Primeiras Quinze Vidas de Harry August, o primeiro livro de Claire North editado em Portugal, tem uma história próxima destas duas, mas já lá vamos.

Claire North é o segundo pseudónimo, depois de Kate Griffin, da autora britânica Catherine Webb. Nascida em 1986, estreou-se aos 14 anos com Mirror Dreams, o primeiro de uma das séries de romances young adult com melhor reputação, tendo publicado desde então uma impressionante quase dupla dezena de livros. Ainda que a qualidade destas primeiras fosse já notável, este As Primeiras Quinze Vidas de Harry August, vencedor em 2015 do John Campbell Memorial Award for Best Science Fiction Novel of the Year, vai consideravelmente mais longe: é um dos melhores romances de ficção científica publicados nesta última década, capaz de reanimar um dos panos de fundo mais beliscados deste género.

Harry August nasceu em 1919 e morreu em 1989. E voltou a nascer em 1919, muitas vezes mais, trazendo de cada uma das suas vidas uma memória transversal. É um kalachakra ou ouroboriano, termos importados, respectivamente, ao budismo esotérico e à cultura egípcia, e não é o único. Há ainda um clube de indivíduos extraordinários como Harry, o Clube Cronus, cujo nome é também uma amostra da capacidade que a autora tem de resolver com inteligência, humor ou eficácia alguns lugares demasiado visitados da ficção científica, tal como há outros com as mesmas capacidades que não fazem parte do clube, como é o caso de Vincent, a Némesis de Harry. Vamos descobrindo muito sobre todas as vidas de Harry, numa série de capítulos curtos, uma espécie de haikus cinematográficos, com todas as vidas apresentadas ao mesmo tempo, o que acaba também por traduzir uma espécie de aproximação em estilo narrativo ao que talvez possam ser os mecanismos de uma memória colossal como a de Harry. Afinal de contas, à soma de mais de uma dezena de vidas podemos continuar a chamar uma vida. Mas esta solução narrativa permite também à autora apresentar de uma forma absolutamente original a interrupção do sentido único do tempo, tema que desde H. G. Wells até nem tem conhecido assim tantas variações. E, ao colocar Harry a viajar no tempo apenas porque transporta as memórias das vidas passadas ao longo da linearidade de cada vida, isto permite à autora escapar às incoerências, contradições e paradoxos capazes de labirintar qualquer linha de raciocínio típicas das histórias de viagens no tempo, narrativas aliás brilhantemente parodiadas pela autora numa passagem destacada por Inês Botelho no prefácio editado em conjunto com esta obra e que passamos para aqui também: “cem gerações mais tarde, o nosso bravo viajante dá por si despido de existência porque a sua antepassada foi apanhada com o filho do talhante e, por isso, ao não existir, já não pode regressar ao passado e impedir o seu próprio nascimento assustando um pardal, e portanto nasce, pelo que já pode regressar ao passado e… Será que devemos introduzir Deus a esta altura?”

Também merece destaque a construção da personagem Vincent, ou melhor, do próprio Harry na sua relação com o seu arquinimigo total. A luta total contra Vincent é o elemento agregador não da obra mas, curiosamente, de todas as vidas de Harry. A eternidade, como já vimos acontecer em tanta literatura, parece ser boa em teoria mas quase insuportável na prática. A grande história mata quase todos, tenham morrido ou não. E neste sentido, a narrativa desenhada por Claire North resulta particularmente bem, porque contra o enfoque implacável da história dos grandes homens e dos grandes eventos, aqui funciona a petit histoire, a das vidas de Harry observadas com uma perspectiva muito mais doméstica e menos política. Resumindo, o que Claire North sugere é que, no fundo, há uma certa normalidade no extraordinário ou que, pelo menos, as mesmas regras acabam por se aplicar. Harry, na verdade, poucas respostas mais tem do que a maioria de nós. Ficamos a saber que, durante a sua terceira vida, Harry vagueou por aí à procura de respostas, como uma espécie de monge ou asceta, um vagabundo espiritual semelhante a tantos outros, reais ou ficcionados. O curioso é que as doze vidas seguintes demonstram que a procura de respostas é apenas isso, uma procura, vivamos o número de vezes que vivamos. Sabedoria e conhecimento estão longe de ser a mesma coisa e só a nossa arrogância nos permite conclusão sustentar este desejo de conhecer o tecido do universo que ou não fomos desenhados para conhecer ou, pior ainda, não fomos desenhados para suportar.

Ficamos, assim, os leitores, com uma dívida de gratidão à Saída de Emergência, que publicou recentemente As Primeiras Quinze Vidas de Harry August, de Claire North, com tradução de Casimiro da Piedade – que talvez tenha algo em comum com o pseudónimo da autora.