Imagine o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, convertido numa arena. O recinto tem a forma circular, mas amanhã à noite, na primeira edição em Portugal do Red Bull Culture Clash, estará pensado como um quadrado que vai receber, em cada um dos vértices, um palco. Cada um desses palcos acolhe um coletivo de músicos – a que a Red Bull chamou de crews – que irá puxar, da melhor forma que souber, pela plateia. Sim, é uma competição de música, um choque de bandas, de estilos, de posturas, de géneros, mas não daquelas competições em que há um júri sentado à mesa a ver quem se porta melhor, quem está mais afinado, quem atinge os mais profundos agudos ou consegue aguentar os melhores falsetes. Isto é uma festa da cultura urbana, meus senhores. E é para pesos pesados. É uma tradução em quatro palcos, debaixo do mesmo teto, do pulsar artístico musical da cidade de Lisboa que tanta diversidade faz chegar ao público: dos rugidos das guitarras às batidas que espelham a herança cultural de África que se vive em muitos bairros da capital.
Depois de andar com RIOT a “partir pedra” pelo seu catálogo de 15 anos, Branko juntou Fred, Carlão, Pongolove e Kalaf para os derradeiros ensaios. “Não queríamos vocalistas a chatearem-nos. Só para ensaiar. Nós ficámos com a cara enfiada nos computadores”
O desafio foi lançado a quatro músicos: Batida, Branko, DJ Ride e Moullinex. Cada um deles foi convocado para representar diferentes identidades. E para que isso rebente no palco da melhor forma possível cada um deles chamou para o seu lado convidados especiais – já vamos conhecê-los – para assim aumentar a grandiosidade da festa. Todos contra todos, tudo em nome de uma noite que se quer de muita festa.
No final, a votação decorre de mão no ar. Quer dizer: de mão, de braço, de corpo, de saltos e gritos para o ar pela plateia que vai ficar instalada, a dançar, no centro do Coliseu, havendo um sonómetro para registar qual a crew que vai receber mais aplausos – e berros. Os dados estão lançados e agora depende das equipas.
Todas a crews dizem que querem ganhar. Mas das quatro, há três que entram com um maior espírito de competição. A Matilha, equipa de DJ Ride, composta ainda pelos MGDRV (lê-se megadraive, com Apache, Yo:Cliché e Skillaz) e pelo rapper do Porto Jimmy P, vem da raiz do hip hop competitivo. DJ Ride, o chefe da turma, até é figura de proa nos campeonatos do mundo de DJing e turntablism, por isso sabe o que é isso de entrar em palco para vencer. “O próprio nome da crew, Matilha, vai ao encontro da cena do hip hop, de uma equipa cheia de sede, brava e agressiva. Queremos levar isso para cima do palco”, conta Ride.
Por seu turno, Branko – membro dos agora hibernados Buraka Som Sistema – diz que sempre levou tudo o que faz na música muito a sério. “E não é suposto ser assim? Não vou ter o espírito dos portugueses nas Olimpíadas, que mesmo que fiquem em 12º dizem que é fixe.” Foi por isso que puxou para a sua equipa, a Club Atlas, os eternos amigos dos Buraka Som Sistema – RIOT e Kalaf, Fred Ferreira (que pertenceu à banda até o início de 2015), Pongolove (de certeza que se lembra de a ouvir a gritar “wegue wegue” em “Kalembe”) – mas também o histórico Carlão (cara mais reconhecida dos Da Weasel, membro dos 5-30 e também com uma muito respeitável carreira a solo: “Ah yah, bebé”).
Moullinex – um dos responsáveis pela editora Discotexas – também tem estado a trabalhar forte, entre o computador e a sala de ensaios, para que o medidor de decibéis consiga ultrapassar os limites sonoros mais do que legais na altura de contar votos. “O Culture Clash tem esta componente de elevação coletiva mais do que uma competição. Mas é claro que o objetivo é ganhar!” Para isso, convocou Xinobi (DJ e produtor com quem partilha o trabalho na Discotexas), Da Chic (“A melhor frontwoman que conheço”, sublinha) e também The Legendary Tigerman (o senhor rock ‘n’ roll). Mas há mais: “Sem revelar muito, posso dizer que o nosso número de convidados tem dois dígitos.” A equipa está tão confiante que Da Chic diz que o grupo devia chamar-se “Moullinex Jarda Machine”.
Skillaz (Miguel Pité, irmão de RIOT, da crew Club Atlas), DJRide, Jimmy P, Yo:Cliché (André Madeira) e Apache (André Pinheiro). A Matilha diz-se brava e agressiva e com enorme espírito competitivo
Já Batida – projeto artístico do músico luso-angolano Pedro Coquenão – solta uma gargalhada quando lhe falamos da enorme vontade de ganhar nas restantes três crews. “Acho mais piada ao encontro do que propriamente ao confronto. Não tenho grande paciência para confrontos”, diz Batida. “Eu já ganhei”, dispara. “Fico satisfeito só por poder ter espaço para estar entre esta malta e fazer um trabalho de qualidade. É claro que as pessoas gostam do desafio e isso leva mais gente ao espetáculo, mas o que me interessa é que em cada ronda sejam feitas grandes atuações.” E é em nome desse espetáculo que Batida chamou para a sua equipa DJ Satélite (um dos veteranos da cena eletrónica africana), Karlon (MC dos Nigga Poison), os dançarinos André e Gonçalo Cabral e Bernardino Tavares. E Bonga. Ele mesmo. É a crew de Batida + Kambas e o Próprio Kota!. “Só poder estar a trabalhar em algo de que gosto com estes artistas que tanto respeito faz-me dizer que já ganhei. Já ganhei só por receber um SMS que diz [e pega no telemóvel]: ‘Ao chegar à Tuga ligo para a hora exata do táxi. Assinado: Kota’. É sinal que vou tê-lo [Bonga] outra vez aqui comigo a ensaiar na garagem”, diz o músico.
Ensaiar até subir ao palco. Os últimos dias têm sido de corrupio em cada uma das salas de ensaio onde as crews vão ensaiando. Houve muito trabalho de “partir pedra”, como explicou Branko ao i. No estúdio instalado numa cave de Campo de Ourique, o quartel-general da Enchufada há, pelo menos, dez anos, João Barbosa e Rui Pité (RIOT) baixam os ecrãs dos computadores para não deixarem escapar nenhuma informação indesejada e convidam-nos para um café no Jardim da Parada, ali ao lado. “Vai ser uma oportunidade de pôr tudo o que fizemos, nos últimos 15 anos, de igual para igual. Desde os tempos do drum ‘n’ bass da Cooltrain Crew, passando por 1 Uik Project até, claro, Buraka Som Sistema”, explica. Branko avisa ainda que não há nem uma música que vá ser tocada da forma como foi gravada. Esse tem sido, na verdade, o grande trabalho das últimas semanas: percorrer todo o catálogo, recriar e, só no fim (ontem, na verdade), ensaiar tudo ao minuto – ao segundo, com contrarrespostas incluídas, caso seja necessário. “Temos tanta coisa para abordar que acho que a chave é ir buscar as pessoas que foram lá para ver os outros. As 300 pessoas que compraram bilhete para ver não sei quem, se estiverem a gritar mais um bocadinho por ti no fim, quer dizer que foram convertidas.”
Na zona da Praça do Chile, Luís Clara Gomes (Moullinex) e Bruno Cardoso(Xinobi) combinam aquilo que podem ou não dizer durante a conversa com o i. Teresa de Sousa (Da Chic) também passa pelo estúdio para conversar e limar arestas. O grande desafio da Moullinex Live Machine é pôr o grupo a funcionar como um relógio suíço, já que esta será – à partida – a única crew a trabalhar em formato de banda, mas a puxar pelas referências da música negra, como “o funk, o blues, o r&b, o soul, o rock e a energia punk-rock”. São os géneros em comum em todos os membros da equipa de Moullinex. “Este conceito cria algo de novo. É algo que nunca tínhamos feito e muitas das músicas que vamos apresentar nunca as tocámos assim. Ultrapassa a ideia predatória do concurso musical. É uma oportunidade para criar cultura”, diz Moullinex. Quanto à estratégia, LuísClara Gomes levanta um bocadinho o véu para confessar que se inclinou “para as músicas mais imediatas”, canções “com mais energia e mais ‘jarda’, que permitam comunicar-se muito depressa”.
Xinobi (Bruno Cardoso), Da Chic (Teresa de Sousa com Kima ao colo) e Moullinex – The Legendary Tigerman estava em digressão por Paris– vão munidos de baixos, baterias e guitarras para o palco do Red Bull Culture Clash para espalhar os sons quentes da soul e do funk
Lá à distância, numa sala de ensaios em Mem Martins – a linha de Sintra a ‘representar’ no hip hop nacional – DJRide parece ter um pensamento convergente ao de Moullinex, apesar de mostrar-se mais cauteloso na altura de montar a estratégia. “É difícil competir contra o mediatismo de outras crews”, começa por dizer. “Há uma delas que tem representantes dos Buraka [Som Sistema] e a cara dos Da Weasel”, ri-se. “Mas claro que apostamos nos nossos trunfos, nas músicas mais conhecidas. Sobretudo no segundo round vamos ter música mais trendy, hip hop com flows muito mais new school”, explica. “Vai ser metade-metade: levamos coisas reconhecidas e, por outro, vamos ter beats muito fortes de trap e bass music para que, mesmo as pessoas que não conheçam, possam perceber que está muito forte.”
A Matilha vai ser a digna representante do puro género hip hop neste Red Bull Culture Clash. “Na experiência de palco acho que estamos todos mais ou menos no mesmo patamar. Mas nós somos uma crew mais específica e por isso vamos apostar muito na nossa sonoridade.”
De volta a Lisboa, à zona de Belém, onde Pedro Coquenão tem, há muitos anos, a casa da sua criação, vai terminando mais um ensaio com os bailarinos que o vão acompanhar. “Nenhuma crew apresentou a dança como parte da arte – e é algo que me faz alguma espécie, porque a dança, para mim, é indissociável da música, ainda mais se fazes música a que dás vagamente o nome de música de dança…” Os manos Cabral, André e Gonçalo, ainda estão a pingar suor, mas a precisar de sair com urgência para outro ensaio de um outro trabalho. “O Gonçalo participou num programa de televisão onde mostrou aquilo que um b-boy pode fazer; o André é dos melhores bailarinos de Contemporânea que temos no país e anda a dançar com tudo o que é coreógrafos portugueses”, conta Batida.
Uma das figuras chave da crew Batida + Kambas e o Próprio Kota! é o senhor Bonga. Com os seus 74 anos, arriscamo-nos a dizer que será, muito provavelmente, a pessoa mais velha a marcar presença na noite do Red BullCulture Clash. “OBonga está cá porque ele é que quis. E ele é que sabe”, ri-se Coquenão. “Havia uma lógica de convidados especiais em cada crew. Não sei se alguém vai levar o Jorge Palma ou os Xutos &Pontapés ou outra lenda viva como o Bonga. Para mim, o Bonga é a figura, o desenho animado que nunca foi feito. É uma cena. Eu cresci a vê-lo vestido de leopardo a cantar letras que tanto chateavam as pessoas como o faziam rei da festa”, recorda. Na altura de fazer o convite ao amigo “kota”, Coquenão perguntou-lhe o que preferia: um aparecimento épico no fim ou fazer parte da crew. “‘Eu quero fazer parte do gang!’, disse-me ele. Foi ele que decidiu e confiou em mim aquilo que ia fazer.”
Amigos, irmãos e “inimigos”. No meio deste confronto de titãs da cultura urbana portuguesa, há alguns detalhes que saltam à vista. Será curioso ver amigos e irmãos em “confronto” nos vários lados da barricada. Legendary Tigerman já trabalhou por diversas vezes com DJRide; os bailarinos Cabral da equipa de Batida são também bailarinos de Da Chic e RIOT é irmão de Skillaz. “No caso dos irmãos, espero que se piquem uns com os outros!”, ri-se DJRide. Poderá haver hipótese de isso acontecer? RIOT, o Pité mais velho, diz que será difícil. No entanto, os mind games já arrancaram. “De vez em quando mando-lhe uma mensagem”, sorri RIOT. “Mas no outro dia foi o Yo: Cliché que se meteu comigo no Instagram. Veio dizer-me: ‘Nem vale a pena saíres de casa, boy.’ Eu respondi: ‘Ya, esqueci-me que MGDRV era uma cena. Também vão lá ver aquilo? Precisam de guestlist?’”