A elevada atitude do edifício onde mora a presidência do Conselho de Ministros oferece-nos uma bela vista sobre Lisboa. Vemos desde o Jardim da Estrela ao princípio do Tejo no gabinete de Graça Fonseca, a secretária de Estado da Modernização Administrativa. Há arte moderna, as bandeiras protocolares e acabamentos em madeira. É de manhã e ela sorri quando a equipa nos recebe. Só vemos mulheres. Carregam agendas, telefones e dossiers. Oferecem-nos café. A secretária de Estado senta-se à cabeceira de uma mesa de reuniões e começa a entrevista. O cabelo prateado não lhe esconde a jovialidade; está a meio dos quarenta mas ninguém diria.
Entrou no Partido Socialista há dezasseis anos e já foi chefe de gabinete, vereadora da Câmara Municipal de Lisboa e secretária de Estado. As três funções com António Costa. Pelo meio, foi investigadora académica em Coimbra e deu aulas no ISCTE, sendo doutorada em sociologia.
Quando o atual primeiro-ministro tomou posse, reuniu vários velhos conhecidos. Graça Fonseca fazia parte do grupo e assumiu uma pasta que liderara na autarquia da capital: a modernização administrativa. O programa de simplificação da máquina burocrática do Estado foi relançado logo no final de 2015. Tendo uma década de idade, a ideia passou por manter a matriz original do programa, com uma dinâmica transversal ao governo e a ideia de compromissos públicos. “Não era possível ter um papel ‘setorial’ com o Simplex. Sentamo-nos à mesa com todos”, conta a secretária de Estado.
O i pergunta-lhe se não há um paradoxo em governar com partidos programaticamente anti-capitalistas – como o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista – e fazer uma volta nacional para ouvir empresários. Graça Fonseca esclarece: “Estamos a ouvir os cidadãos e as empresas que usam serviços públicos”, descrevendo de seguida os “vários tipos de ouvir” que a “Volta Simplex” conjugou. Sessões abertas com autarcas, empresas e associações de vários setores e apresentações em Concertação Social. Para si, o verdadeiramente importante era assumir que em dez anos “muita coisa mudou”. Os meios digitais, por exemplo não são os mesmos – “há 10 anos nem havia Facebook” – e os cidadãos estão mais informados, mais exigentes.
A relação das pessoas com a entidade pública transformou-se e essa é uma preocupação. Acredita que para se mudar algo as pessoas têm que percecionar a mudança. “Se ninguém reparar na mudança, não é criado impacto. Por isso é que ouvimos os utilizadores”. Fonseca concretiza: “As questões podem não ser as mesmas entre Bragança e Faro ou entre o litoral e o interior e nós temos sempre que olhar para ambas. Essa heterogeneidade de um país tem impacto na relação das pessoas com a administração pública”, e é sobre esse impacto que o ofício parece girar.
Sobre essa relação de proximidade que procura estabelecer lembra que “a experiência autárquica é uma boa escola para a governação”.
Passamos do novo Simplex para o Orçamento Participativo, uma medida que também trouxe do seu passado como vereadora municipal.
“Os fenómenos que a sociedade ocidental atravessa são relativamente transversais. A relação do cidadão com o Estado, do eleitor com o eleito, etc. É um problema real, há um défice de confiança nas pessoas. Como é que alguém que nasceu em democracia e teve sempre a hipótese de votar num Presidente da República, em legislativas ou autárquicas consegue colocar em causa um Orçamento Participativo de 3 milhões de euros?”, dispara aos céticos.
“Se acreditam que as pessoas não são capazes de escolher como utilizar 350 mil euros para a cultura, como é que olham para a eleição de um presidente? Há orçamentos participativos em câmaras de todos os partidos…”, continua.
Perguntamos se por aí não corremos o risco de juntar a lógica de democracia participativa com a lógica de democracia representativa. O argumento na confiança mantém-se: “Há um fenómeno de desconfiança dos cidadãos perante as democracias, os políticos, etc. e isso tem a ver com a dimensão representativa. Mas quando não se confia no sistema bancário ou nos jornalistas [risos] não tem a ver com a representação. é um problema generalizado de falta de confiança”.
Para si, tanto a Europa como os governos nacionais têm responsabilidades no problema. No entanto, está mais interessada em soluções que acusações. Haverá também inversões de prioridades.
“A Europa estar permanentemente a discutir a diferença entre um défice de 1,9% ou 1,7%. É importante, mas há problemas muito mais sérios. Isso é não perceber a desconfiança dos cidadãos nas instituições europeias”. Que preocupações, então? “Quando há partidos que fazem da raça o seu princípio de orientação isso devia ser mais prioritário para a União Europeia do que discutir décimas do défice”, exemplifica.
Num cenário em que é cada vez mais difícil ser progressista nesta Europa, perguntamos se essa crise alastrou para o plano nacional. “Em Portugal há uma solução com partidos de esquerda que representa logicamente uma orientação ideológica e programática, que eu prefiro e partilho no sentido em que agora há uma preocupação com as pessoas. O governo anterior deu um foco muito importante à questão financeira”.
Lembramos que o governo anterior estava obrigado a isso e a socialista não o nega. O problema, mais uma vez, passa pela confiança. “Estavam obrigados a cumprir com a Troika mas não precisavam de estar sempre a dizer que iam além da Troika. Isto passou para as pessoas: quando corremos o país, vários empresários diziam ‘há anos que ninguém vinha aqui falar connosco’. Chocou-me. Vila Real pode parecer longe, mas o país tem 700 quilómetros, percorrem-se facilmente. Havia o sentimento de ‘deixaram de olhar para nós como deviam olhar’”, conta.
Se o esforço fiscal que é pedido não aumenta essa distância das pessoas em relação ao Estado, Fonseca afirma que lhe “perguntam mais vezes sobre a dificuldade de como pagar os impostos do que sobre a existência dos impostos”. Segundo a governante, as cativações não são uma forma menos transparente de pedir esse esforço porque “não há nenhum governo que não faça cativações; faz parte da gestão orçamental”.
Se o PS de hoje mudou muito, Graça Fonseca resume que o partido continua a ser “o sítio certo para mudar o mundo”. Se a liberdade – valor que privilegia – é posta em causa pela associação a partidos como o Bloco e o PCP, Fonseca está serena. “Todos os partidos à direita e à esquerda têm posições fundacionais e posições flexíveis. Não acho que isso seja a preto e branco”.
Insistimos. Não terá um partido radical uma visão a preto e branco? A resposta é rápida: “Um partido radical é um partido nazi. A direita agora descobriu a conversa da ‘esquerda radical’, mas em Portugal há muito tempo que felizmente não sabemos o que é um partido radical. Por mais diferenças que haja, partilhamos uma base que está na Constituição”, defende. Acerca desse mesmo texto constitucional ter sido chumbado pelo CDS, diz: “O CDS fez o seu caminho. Seria ridículo eu chamar radical ao CDS, como seria ridículo o CDS chamar radical ao Bloco”. Mas Bloco é anti-europeu e anti-NATO, certo?, pergunta o i. “O CDS também era contra a moeda única e contra a União Europeia”, retorna. Mas um partido anti-capitalista não é radical?, persistimos. A resposta sai novamente rápida. “Onde é que questionar o capitalismo é ser contra a democracia? Estamos a partir de uma posição ideológica do jornalista ao dizer que capitalismo é sinónimo de democracia. Não sabemos o que acontece daqui a dez anos. Se o sistema capitalista como o conhecemos já não existe”.
Se isso vai acontecer, Graça Fonseca confessa não ter “o dom da adivinhação”. “Como é que o sistema evolui, como é que a regulação se faz, que importância têm as agências de rating, é um conjunto de questões a ser discutido”. Concluímos, questionando se faz sentido ter essa discussão entre quem quer reformar o sistema e quem quer revolucionar o sistema. A secretária de Estado não cede. “As revoluções são dinâmicas transformadoras. Não estamos a falar do espírito da revolução francesa; estamos a falar de hoje ser saudável ser revolucionário em democracia. Um dos grandes problemas da sociedade é não questionarem suficientemente o seu futuro. Veja bem: na Suécia até há um ministério do Futuro”.
Para Graça Fonseca, as revoluções de hoje fazem-se assim; a pensá-lo. Ao que vem a seguir.