Vai ser possível ter 90% dos casos diagnosticados em 2020 e cumprir as metas da ONU?
Mais do que ser possível, é uma obrigatoriedade. E não apenas diagnosticar, mas garantir que, depois do diagnóstico, há uma ligação aos serviços de saúde adequada para que as pessoas iniciem de imediato o tratamento, como indicam as novas normas. É crucial garantir isto porque, ao contrário de outras doenças, mesmo infecciosas, o tratamento no VIH é uma ferramenta de saúde pública: não só permite controlar a infeção daquela pessoa em particular, como diminui a probabilidade de transmissão a outras. Não sei se haverá 115 mil pessoas em Portugal a viver com o VIH, mas mesmo os números mais otimistas dão sempre pelo menos 30 mil pessoas infetadas que desconhecem o seu estado. Temos de agir e, com base na evidência, aplicar as melhores práticas para aprofundar o diagnóstico.
Por exemplo?
Uma das medidas mais eficazes passa por termos estratégias dirigidas às populações mais vulneráveis. Temos uma epidemia que abrange 0,7% da população, mas há bolsas onde a infeção é mais frequente. Há estimativas de que afeta 10% dos trabalhadores do sexo. Entre a população de homens que fazem sexo com homens, há estimativas de 7% de prevalência. Os migrantes têm maior prevalência e há ainda o subgrupo dos utilizadores de drogas injetáveis. Fruto de políticas de redução de danos, como a troca de seringas, a epidemia diminuiu, mas ainda é superior à da população em geral.
Como se alcança esses grupos?
São precisas mais estratégias comunitárias, não formais, geridas e promovidas por organizações não-governamentais, que são mais eficazes junto destes grupos do que o SNS.
A relação do Estado com essas associações devia ser reforçada? Os apoios têm sido intermitentes.
Sim. O exemplo mais flagrante da falta de apoio é o GAT, que tem o projeto Checkpoint em Lisboa, um local de diagnóstico na comunidade muito dirigido para os homens que fazem sexo com homens e com resultados interessantes. Não só têm de pagar renda como, recentemente, anunciaram não ter capacidade para manter o serviço por dificuldades financeiras. Mas mesmo quando funcionavam em pleno havia queixas de que, quando diagnosticavam alguém, a pessoa não podia ser encaminhada diretamente para um médico para iniciar tratamento. Era obrigatório ir ao médico de família, fazer de novo o primeiro teste, fazer o teste de confirmação e só depois ser enviado para o médico especialista. Estamos a falar de populações vulneráveis, já de si com resistências em ir aos serviços formais. Com esta burocracia, perdem-se oportunidades de tratamento.
Os casos por detetar estarão só nesses grupos? Hoje a maioria dos novos casos surgem entre heterossexuais. Não falta sensibilização?
Sim, em números absolutos são o maior grupo. Houve uma grande diminuição, quase absoluta, da sensibilização desde os anos 90. Deixou-se de falar do assunto nas escolas, deixou-se de ter campanhas dirigidas a grupos específicos e as pessoas criaram o conceito errado de que o VIH/sida é uma doença como outra qualquer, quando deve ser evitada a todo o custo. Há um descurar dos riscos que tem de ser contrariado e temos de passar a encarar o teste do VIH como um teste comum, normal, como qualquer análise.
Ainda não é rotina porquê? Seria caro para o Estado?
Caro não é. Os preços baixaram imenso e hoje os testes de VIH rondam um euro. É uma questão de preconceito e às vezes de desconhecimento, até dos profissionais. Mas, acima de tudo, as pessoas têm medo. Continuamos a ter em Portugal um elevado estigma e discriminação que pode ser subliminar, mas que alimenta o receio.
Mas é o tabu do sexo ou tem mais a ver com a colagem do VIH aos homossexuais?
É um pouco de tudo. Na década de 80 a infeção foi muito associada aos homossexuais e, na década de 90, aos utilizadores de droga. O estigma associado a estes dois subgrupos multiplicou o estigma em torno do VIH, quando sabemos que é uma infeção transversal, afeta todos. Depois tivemos casos não assim tão antigos como o cozinheiro despedido quando o patrão descobriu que estava infetado. Isto cria sempre receio entre as pessoas, para mais no contexto de dificuldades económicas e de desemprego. Além disso, continua a haver grandes problemas aceitação social e nas famílias. Enquanto médico, cheguei a ver pessoas no leito de morte que não tinham a visita dos pais.
Se não conseguirmos eliminar a doença não será por falta de medicamentos eficazes, é isso?
Esse é o ponto-chave. Temos à nossa disposição toda a tecnologia e conhecimento para atingirmos o objetivo da ONUSida, de eliminar esta ameaça de saúde pública em 2030. Encontrar uma cura ajudaria imenso, mas mais vale vivermos de forma pragmática no mundo real em vez de esperar que a cura apareça no futuro próximo.
Aumentando o nível de diagnóstico, como é que se vai assegurar tratamentos que hoje já custam mais de 200 milhões por ano ao Estado?
Há fatores que poderão atenuar o aumento da despesa. Diagnosticamos tardiamente 50% dos casos, o que implica fazer tratamentos mais caros quando as pessoas entram no sistema. Se houver um reforço do diagnóstico, isso tenderá a diminuir. Por outro lado, com a medida de tratar todas as pessoas mal são diagnosticadas, diminuiremos novas infeções, o que no futuro levará a menos despesa. Claro que isto exige um investimento superior agora e a indústria farmacêutica, perante uma estratégia clara do país, terá de entrar a bordo como parceiro para se negociarem modelos de financiamento e partilha de risco. O governo tem de definir o que é prioridade e quanto está disponível para gastar e, com base nisso, negociar com as farmacêuticas.
Esta semana propôs em Berlim numa reunião da ONUSida a criação de uma rede internacional de deputados dedicada a esta temática. É preciso manter a sida na agenda pública?
Absolutamente. O caso português é paradigmático: em 2011, Portugal iniciou o programa da troika. Na Grécia, em condições iguais, houve um ressurgir de casos de infeção fruto do desinvestimento em políticas de saúde publica. Cá, graças a esforço político através do grupo parlamentar de acompanhamento da problemática do VIH, que eu coordenava, fomos capazes de ter o apoio unânime dos partidos em torno de um projeto de resolução, que depois levou ao Programa de Prevenção e Controlo da Infeção VIH/sida 2012-2016 e permitiu que o VIH continuasse na agenda política.
Mas houve a interrupção do programa de troca de seringas, diminuiu a distribuição de preservativos.
Houve uma reconfiguração da troca de seringas. E se olharmos para o diagnóstico, a situação melhorou: hoje é possível fazer um teste anónimo em qualquer centro de saúde, coisa que dantes não acontecia. Graças a isso, o diagnóstico tardio, que rondava os 65% dos casos, caiu para 50% desde 2011. Não nego que houve dificuldades. Gostaria que o governo, que só autorizou em 2015 a dispensa de antirretrovirais por três meses, o tivesse feito mais cedo. Mas apesar do contexto da troika, fomos capazes de manter o VIH como um tema forte na agenda. Foi com base nessa experiência que fiz a proposta de uma rede de parlamentares. Sem pressão política, é impossível manter a sensibilização nos diferentes organismos do Estado.
O PS propôs a distribuição de preservativos nas escolas e universidades. Costuma haver reservas na direita sobre estas medidas. Como vê a iniciativa?
A ciência tem mostrado a eficácia de políticas de distribuição de preservativos junto da população em geral, agora parece-me um oportunismo político para desviar a atenção do essencial, numa altura em que o PS tem responsabilidades de governação. Estamos a viver um momento em que o governo não apresenta um plano de ação e já o devia ter feito. As orientações para testar e tratar de imediato não estão a ser cumpridas em algumas zonas de país, continua a ser difícil entrar no sistema de saúde e a distribuição de preservativos tem tido falhas. Não me parece sério. O que deve ser feito, a bem da seriedade, é avançar com um plano de ação que defina, claramente a estratégia a seguir nos próximos anos.