A deriva do Brexit


O discurso de Amber Rudd e as políticas que se lhe seguem têm sido comparados por muitos aos discursos de Hitler e à sua obsessão com “os membros da nação que são o suporte da sua existência”.


Quem tem medo compra um cão, diz a sabedoria popular. Mas quão grande há de ser o bicho quando se tem medo de algo que não se sabe bem o que é? Basta um caniche para nos proteger do que o Brexit ameaça, ou vale mais apostar já num mastim, não vá a coisa ficar mesmo muito feia?

Portugueses a viver no Reino Unido são, de momento, entre 300 mil e meio milhão, e segundo o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, um terço deles não poderão permanecer no país sem os direitos de livre circulação conferidos pela União Europeia a cidadãos de Estados-membros. Não preenchem os requisitos necessários: o domínio avançado da língua inglesa, educação superior reconhecida pelas entidades empregadoras britânicas ou mesmo rendimentos anuais superiores a €24 500. O medo, diga lá o que o Marcelo disser sobre a segurança dos portugueses no Reino Unido, está presente e é difícil de ignorar.

“A apreensão e a incerteza são as principais coisas a reter, no meu caso,” diz–me Afonso Ramos, um lisboeta que há alguns anos mora em Londres, onde é pesquisador e doutorando na University College London.

E agora que a primeira-ministra Theresa May anunciou a invocação do artigo 50.o, pelo qual o Reino Unido aciona o processo de saída voluntária da UE, para meados do próximo mês de março, essa apreensão e incerteza vem visitar-nos mais vezes, inesperadamente.

É que não são só os ataques a jovens polacos e os insultos que ouvimos nas ruas, nas escolas ou nas redes sociais – “Ainda por cá andas? Mas não sabes que votámos Brexit? Volta para a tua terra!” – que nos assustam. Não são só os olhares que nos deitam quando atendemos o telemóvel nos transportes públicos – era a avó que ligava, podia não atender? Não são só as constantes perguntas que nos atormentam, de amigos bem-intencionados, pois claro, sobre o que pensamos fazer agora que se vai dar o Brexit.

Há razões concretas para este medo que se apodera cada vez mais da diáspora portuguesa no Reino Unido. Do pânico que reconhecemos no olhar dos franceses e alemães, espanhóis e italianos, polacos e romenos, húngaros e austríacos, enfim, em todos os cidadãos europeus com que nos cruzamos no caminho. Um terror que assoma agora também, lentamente, as mentes dos britânicos.

Há, por exemplo, o discurso da ministra da Administração Interna, Amber Rudd, na recente conferência anual do Partido Conservador. Segundo a sra. Rudd, “não é justo” haver estrangeiros no Reino Unido a “retirar postos de trabalho que poderiam ser de cidadãos britânicos.” E há as medidas consequentemente anunciadas pelo Ministério da Administração Interna, segundo as quais as empresas terão de participar o número de trabalhadores estrangeiros que empregam e entregar ao governo listas com as respetivas nacionalidades. Há também, pela primeira vez, um requisito no censo escolar anual que pede aos professores a nacionalidade e país de origem dos seus alunos. Os pais têm o direito de se recusarem a dar estes dados às autoridades escolares mas, na grande maioria dos casos, esse direito não lhes tem sido comunicado.

O discurso da sra. Rudd e as políticas que se lhe seguem têm sido comparados por muitos aos discursos de Adolf Hitler e à sua obsessão com os “membros da nação que são a base e o suporte da sua existência” e os que somente habitam num país, quais parasitas da nação. Comparação fácil, óbvia. Não há que ter medo disto?

“Se até à chegada do Brexit não havia qualquer questão quanto a permanecer por cá, acho que todo o processo veio levantar dúvidas sobre isso”, insiste o Afonso quando falamos sobre o que fazer agora. Mas há falta de outras opções, nomeadamente de apoios académicos em Portugal, acrescenta: “Ainda que o mais certo seja continuar [pelo Reino Unido].”

Muitos têm vindo a precaver-se ao longo dos meses e têm já, ou estão em processo de obter, um cartão de residência permanente. São cerca de 85 páginas a preencher e mais umas tantas de documentação a entregar.

“Tirei um dia em Novembro para preencher a papelada”, confessa a Joana Mateus, mãe de um menino de dois anos e a viver no Reino Unido há quase dez. Quando a Joana fala comigo sobre o Brexit, é sempre com um tom de desgosto. Lá vem o medo outra vez, coisinha chata, este medo, sempre a meter-se nas conversas dos outros. A Joana tem medo pelo filho, pela família e pela vida que construiu aqui. Vai pagar mais de €1300 pelo cartão de residência permanente, sem garantias de o obter. Diz-se por aí, nos círculos dos que se preocupam com estas coisas, que a rejeição do cartão pode ser dada a qualquer um, sem demais explicações. E os €1300 vão também.

“Quem acredita que é um cidadão do mundo é um cidadão de lado nenhum; não entende o que a própria palavra ‘cidadania’ significa.” São palavras da sra. May, ditas não faz ainda uma semana. A restauração da “soberania” britânica, acima de tudo, foi a razão do voto Brexit, acrescentou. Sobre as consequências desta “soberania” para quem não é britânico não deixou uma palavra, nem ameaçadora nem apaziguante.

Deixemos um ponto bem claro: que um povo se ache na necessidade de exprimir a sua vontade política sem a intervenção de estruturas supralegislativas tais como a Comissão Europeia – um sentimento familiar a muitos portugueses – é perfeitamente natural. É justo. Mas o voto pelo Brexit não foi um muito british grito do Ipiranga. Há várias razões para os ingleses, galeses, escoceses e norte-irlandeses se sentirem mal representados politicamente, mas a União Europeia não é, neste caso, a responsável por este descontentamento. A relação entre a UE e o Reino Unido, quando comparada com a de São Bento e Bruxelas, é privilegiada, feita de olhos nos olhos, de respeito mútuo. Onde o respeito acaba está ainda por provar, mas já não falta assim tanto até março de 2017.

De qualquer modo, engana-se quem ache que o voto pelo Brexit se deu verdadeiramente pela soberania. A vontade de “expulsar” a Europa do território da Velha Albion está mais ligada à xenofobia que ao ansiar por uma melhor democracia. A repulsa pelo estrangeiro tem vindo a revelar-se exponencialmente nos últimos meses.

Basta ver como os eurodeputados do partido de extrema-direita UKIP falam do que não é natural para o Reino Unido. Esta semana, quando um dos seus desmaiou, após um alegado confronto com outro representante do UKIP em Estrasburgo, o comunicado da sua convalescença foi expresso com as seguintes palavras: “O Steven [Woolfe] está em boa forma”, mas “farto de croissants e ansioso por um pequeno almoço inglês.” Para os eurocéticos, a metáfora não podia ser mais óbvia. O tom de desdém quando o porta-voz do UKIP proferiu a palavra “croissant” nunca foi mais notório.

A soberania está muito bem para quem a quer, mas um Estado soberano não se pode vender ao racismo populista, à xenofobia baratinha e, claro, à violência ultranacionalista. A soberania tem de significar pensamento próprio, e não pensamento único, pequeno, mesquinho, insular.

Assim, para quem ainda gosta de croissants, o medo continua, fermentando lentamente a cada nova política do governo conservador, consolidando-se com cada agressão jingoísta documentada nos jornais.

Há outro ditado popular que diz: “Quem tem cu tem medo.” Os portugueses no Reino Unido, naturalmente, têm – o medo e o resto.

 

Jornalista


A deriva do Brexit


O discurso de Amber Rudd e as políticas que se lhe seguem têm sido comparados por muitos aos discursos de Hitler e à sua obsessão com “os membros da nação que são o suporte da sua existência”.


Quem tem medo compra um cão, diz a sabedoria popular. Mas quão grande há de ser o bicho quando se tem medo de algo que não se sabe bem o que é? Basta um caniche para nos proteger do que o Brexit ameaça, ou vale mais apostar já num mastim, não vá a coisa ficar mesmo muito feia?

Portugueses a viver no Reino Unido são, de momento, entre 300 mil e meio milhão, e segundo o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, um terço deles não poderão permanecer no país sem os direitos de livre circulação conferidos pela União Europeia a cidadãos de Estados-membros. Não preenchem os requisitos necessários: o domínio avançado da língua inglesa, educação superior reconhecida pelas entidades empregadoras britânicas ou mesmo rendimentos anuais superiores a €24 500. O medo, diga lá o que o Marcelo disser sobre a segurança dos portugueses no Reino Unido, está presente e é difícil de ignorar.

“A apreensão e a incerteza são as principais coisas a reter, no meu caso,” diz–me Afonso Ramos, um lisboeta que há alguns anos mora em Londres, onde é pesquisador e doutorando na University College London.

E agora que a primeira-ministra Theresa May anunciou a invocação do artigo 50.o, pelo qual o Reino Unido aciona o processo de saída voluntária da UE, para meados do próximo mês de março, essa apreensão e incerteza vem visitar-nos mais vezes, inesperadamente.

É que não são só os ataques a jovens polacos e os insultos que ouvimos nas ruas, nas escolas ou nas redes sociais – “Ainda por cá andas? Mas não sabes que votámos Brexit? Volta para a tua terra!” – que nos assustam. Não são só os olhares que nos deitam quando atendemos o telemóvel nos transportes públicos – era a avó que ligava, podia não atender? Não são só as constantes perguntas que nos atormentam, de amigos bem-intencionados, pois claro, sobre o que pensamos fazer agora que se vai dar o Brexit.

Há razões concretas para este medo que se apodera cada vez mais da diáspora portuguesa no Reino Unido. Do pânico que reconhecemos no olhar dos franceses e alemães, espanhóis e italianos, polacos e romenos, húngaros e austríacos, enfim, em todos os cidadãos europeus com que nos cruzamos no caminho. Um terror que assoma agora também, lentamente, as mentes dos britânicos.

Há, por exemplo, o discurso da ministra da Administração Interna, Amber Rudd, na recente conferência anual do Partido Conservador. Segundo a sra. Rudd, “não é justo” haver estrangeiros no Reino Unido a “retirar postos de trabalho que poderiam ser de cidadãos britânicos.” E há as medidas consequentemente anunciadas pelo Ministério da Administração Interna, segundo as quais as empresas terão de participar o número de trabalhadores estrangeiros que empregam e entregar ao governo listas com as respetivas nacionalidades. Há também, pela primeira vez, um requisito no censo escolar anual que pede aos professores a nacionalidade e país de origem dos seus alunos. Os pais têm o direito de se recusarem a dar estes dados às autoridades escolares mas, na grande maioria dos casos, esse direito não lhes tem sido comunicado.

O discurso da sra. Rudd e as políticas que se lhe seguem têm sido comparados por muitos aos discursos de Adolf Hitler e à sua obsessão com os “membros da nação que são a base e o suporte da sua existência” e os que somente habitam num país, quais parasitas da nação. Comparação fácil, óbvia. Não há que ter medo disto?

“Se até à chegada do Brexit não havia qualquer questão quanto a permanecer por cá, acho que todo o processo veio levantar dúvidas sobre isso”, insiste o Afonso quando falamos sobre o que fazer agora. Mas há falta de outras opções, nomeadamente de apoios académicos em Portugal, acrescenta: “Ainda que o mais certo seja continuar [pelo Reino Unido].”

Muitos têm vindo a precaver-se ao longo dos meses e têm já, ou estão em processo de obter, um cartão de residência permanente. São cerca de 85 páginas a preencher e mais umas tantas de documentação a entregar.

“Tirei um dia em Novembro para preencher a papelada”, confessa a Joana Mateus, mãe de um menino de dois anos e a viver no Reino Unido há quase dez. Quando a Joana fala comigo sobre o Brexit, é sempre com um tom de desgosto. Lá vem o medo outra vez, coisinha chata, este medo, sempre a meter-se nas conversas dos outros. A Joana tem medo pelo filho, pela família e pela vida que construiu aqui. Vai pagar mais de €1300 pelo cartão de residência permanente, sem garantias de o obter. Diz-se por aí, nos círculos dos que se preocupam com estas coisas, que a rejeição do cartão pode ser dada a qualquer um, sem demais explicações. E os €1300 vão também.

“Quem acredita que é um cidadão do mundo é um cidadão de lado nenhum; não entende o que a própria palavra ‘cidadania’ significa.” São palavras da sra. May, ditas não faz ainda uma semana. A restauração da “soberania” britânica, acima de tudo, foi a razão do voto Brexit, acrescentou. Sobre as consequências desta “soberania” para quem não é britânico não deixou uma palavra, nem ameaçadora nem apaziguante.

Deixemos um ponto bem claro: que um povo se ache na necessidade de exprimir a sua vontade política sem a intervenção de estruturas supralegislativas tais como a Comissão Europeia – um sentimento familiar a muitos portugueses – é perfeitamente natural. É justo. Mas o voto pelo Brexit não foi um muito british grito do Ipiranga. Há várias razões para os ingleses, galeses, escoceses e norte-irlandeses se sentirem mal representados politicamente, mas a União Europeia não é, neste caso, a responsável por este descontentamento. A relação entre a UE e o Reino Unido, quando comparada com a de São Bento e Bruxelas, é privilegiada, feita de olhos nos olhos, de respeito mútuo. Onde o respeito acaba está ainda por provar, mas já não falta assim tanto até março de 2017.

De qualquer modo, engana-se quem ache que o voto pelo Brexit se deu verdadeiramente pela soberania. A vontade de “expulsar” a Europa do território da Velha Albion está mais ligada à xenofobia que ao ansiar por uma melhor democracia. A repulsa pelo estrangeiro tem vindo a revelar-se exponencialmente nos últimos meses.

Basta ver como os eurodeputados do partido de extrema-direita UKIP falam do que não é natural para o Reino Unido. Esta semana, quando um dos seus desmaiou, após um alegado confronto com outro representante do UKIP em Estrasburgo, o comunicado da sua convalescença foi expresso com as seguintes palavras: “O Steven [Woolfe] está em boa forma”, mas “farto de croissants e ansioso por um pequeno almoço inglês.” Para os eurocéticos, a metáfora não podia ser mais óbvia. O tom de desdém quando o porta-voz do UKIP proferiu a palavra “croissant” nunca foi mais notório.

A soberania está muito bem para quem a quer, mas um Estado soberano não se pode vender ao racismo populista, à xenofobia baratinha e, claro, à violência ultranacionalista. A soberania tem de significar pensamento próprio, e não pensamento único, pequeno, mesquinho, insular.

Assim, para quem ainda gosta de croissants, o medo continua, fermentando lentamente a cada nova política do governo conservador, consolidando-se com cada agressão jingoísta documentada nos jornais.

Há outro ditado popular que diz: “Quem tem cu tem medo.” Os portugueses no Reino Unido, naturalmente, têm – o medo e o resto.

 

Jornalista