Os jornais falham. Passar do interesse do leitor para o clique do consumidor exigiu um equilíbrio com fronteiras ainda por delinear; se é que alguma vez o vamos conseguir fazer.
Era natural e expectável que o PS procurasse capitalizar a ida de António Guterres para a ONU; afinal, até o PSD o fez. O que não é natural ou expectável é a imprensa portuguesa promover esse aproveitamento. Alguns chegaram mesmo a afirmar que o primeiro-ministro, António Costa, é “o melhor amigo” de Guterres.
É preciso lembrar que o Guterres que reunia num sótão com Jorge Sampaio para destronar o soarismo foi o Guterres que não hesitou em derrubar depois a liderança de Sampaio? E que toda a formação política de António Costa no Partido Socialista foi feita ao lado desse mesmo Jorge Sampaio?
Esqueçam, se insistem, esse passado. Olhem antes para as diferenças entre a governação de António Costa – a mais à esquerda de sempre no PS – e a governação de Guterres, em constante articulação com a direita e o mais conservador de sempre no PS… “Melhor amigo”? Só se for para os bitoques.
Toda esta elevação de Guterres, como apontava o João Miguel Tavares – quase a “santo” – e como escrevia o Nuno Garoupa – a “homem sem defeitos” – é assustadora.
O homem foi líder do Partido Socialista, primeiro-ministro em dois governos minoritários e deputado de 1976 a 1999. Alguém acha que é possível fazer toda esta carreira política, em Portugal ou em qualquer parte do mundo, como um anjo na terra? Oiçam Jorge Coelho a contar como deu o peito às balas por Guterres, defendendo um acordo fiscal entre apostas e clubes de futebol, e perguntem-se se um líder que tinha Coelho como número dois pode ser um “não político” – que é outra coisa que também não existe em política.
A eleição de António Guterres para secretário-geral das Nações Unidas é um feito inegável e um orgulho nacional. Se a reação imediata cai, compreensivelmente, para leituras a preto e branco, convinha que os jornais a esclarecessem em vez de a patrocinarem. Em política externa ou interna não se compreende nada por maniqueísmos; isso é trair quem nos lê.
Há outros e mais sérios exemplos de mistificação das notícias. A nível internacional, o mais recente veio do Reino Unido. Esta semana, tabloides britânicos noticiavam que Moscovo estava a chamar filhos de políticos a estudar no estrangeiro de volta a casa porque vinha aí a iii Guerra Mundial. É uma falsidade ou, no mínimo, um exagero. O nacionalismo inglês está ao rubro depois do Brexit e a criação de um grande inimigo exterior é típica desses fenómenos. Se Vladimir Putin tivesse emitido ordens do género, seria um inegável sinal de pré-conflito.
Apesar do Kremlin ter desmentido os rumores no dia e de qualquer académico facilmente clarificar que os movimentos diplomáticos russos se devem a uma reestruturação dos serviços de inteligência, a notícia passou dos tabloides para a televisão portuguesa. A tentação nostálgica pela Guerra Fria vem tornando-se perigosa.
Mais grave que ignorar o passado interno do Partido Socialista é brincar com os destinos da humanidade. Miguel Esteves Cardoso escrevia há pouco tempo que “os ingleses estão a tornar-se o que mais temiam: ridículos”. Era bom que a nossa imprensa fugisse disso. Ontem, este jornal fê-lo.