O idiota Pulaski


Aparece uma miúda quase morta em Central Park, o tempo passa, o romance cresce e espraia-se, e nada de pistas ou suspeitos sólidos, até que o caso chega à comunicação social, momento fatal


Este texto não é uma recensão, mas apenas uma recordação literária do verão. Talvez essa estação convide mais à leitura de escrita leve ou parodística, mas às vezes calham-nos coisas pesadas ou sérias. Embora eu não subestime a paródia, antes pelo contrário, até porque a mesma pode ser uma eficaz arma demolidora, tal como a ironia – esta ainda mais eficaz, porque é, à superfície, mais suave (com ou sem filtro) e nasce na idade certa, aquela em que percebemos que as coisas não são como supúnhamos, ajudando-nos, a partir daí, a viver entre a recordação daquele que foi o nosso otimismo e o precipício do pessimismo. Mas é de recentes leituras sérias – embora ficção, felizmente (já veremos porquê) – que neste outono me tenho lembrado amiúde, mais exatamente de partes do livro “Cidade em Chamas”, de Garth Risk Hallberg (editado pela Teorema, com tradução de Tânia Ganho). E essas memórias – curiosamente – têm-me aparecido sempre acompanhadas de uma frase, também de um livro, que diz que quando cortamos madeira voam aparas. Vá lá perceber-se estas coisas da associação de ideias.

No livro de Hallberg aparece uma miúda quase morta em Central Park, nos agitados e sombrios anos nova-iorquinos de setenta e tais do século xx, e Pulaski é o polícia que fica com o caso. O tempo passa, o romance cresce e espraia-se, e nada de pistas ou suspeitos sólidos. Até que o caso chega à comunicação social, momento fatal; e Pulaski é chamado à presença do superintendente-chefe e do subintendente, que estão sob a pressão de apresentar resultados, de responder aos telefonemas que vêm de cima e dos lados e de se explicarem ao feroz questionário dos repórteres. Pedem satisfações das investigações a Pulaski, que não tem ainda nada de concreto ou de substancial para dar. Os chefes perdem a cabeça (antes que lha cortem), e um diz–lhe: “Acho que é melhor eu explicar-lhe umas coisas, seu idiota. Sabe quantos corpos apanhámos nesta cidade, no ano passado? E isto partindo do princípio de que a sua vítima não bate a bota? Temos fundos federais dependentes da nossa taxa de resolução de crimes. O ano que vem é ano de eleições.” Pulaski, sem exaltações – no seu jeito de homem experiente e desenganado –, pergunta se o vão tirar do caso. A resposta chega pronta: “A lata deste gajo. Não, seu atrasado mental, você vai meter-se em campo e arranjar um culpado, nem que isso dê cabo de si. Vai arrastar alguém para a frente das câmaras e dizer: por Deus, a cidade está novamente segura, e depois o procurador-geral que se amanhe. Senão, sabe quem é que leva um chuto no rabo?”

Até me arrepiei ao ler isto. Mesmo dando o desconto da ficção literária, devia mesmo ser má a vida em Nova Iorque em setenta e tal do século passado. Ainda bem que era lá longe, e há tanto tempo. E deveriam ser rijos os cortes de madeira, com aparas afiadas a voar para todo o lado. E quem levasse com elas que se amanhasse, que para diante é que é o caminho. Mal consigo imaginar. Cá não temos disto. Deus nos livre.