Outubro é, sem dúvida, o mês de António Guterres. Venceu as duas eleições legislativas, que o conduziram ao cargo de primeiro-ministro, a 1 de outubro de 1995 e a 10 de outubro de 1999. Hoje, a 13 de outubro de 2016, será formalmente anunciado com o nono secretário-geral pela Assembleia-Geral das Nações Unidas.
A cerimónia irá decorrer esta quinta- -feira em Nova Iorque e contará com a presença do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. O ex-primeiro-ministro irá intervir, fazendo um discurso de cinco a sete minutos em inglês e em francês.
É a cereja no topo do bolo depois de uma semana de festejos nacionais. O anúncio do embaixador russo na ONU de que Guterres era o candidato recomendado pelo Conselho de Segurança para assumir as rédeas da organização foi suficiente para lançar os foguetes antes da coroação. Uma vez que é a Assembleia-Geral quem escolhe o secretário-geral sob recomendação do Conselho de Segurança, só hoje o ex-primeiro-ministro será oficialmente nomeado para um mandato com início a 1 de janeiro de 2017 e fim a 31 de dezembro de 2022.
Quem muito celebrou a vitória de Guterres foi a Igreja Católica. “Revemo-nos nele, também como crentes, no caso, e pedimos a Deus aquilo que Deus está mais do que disponível para lhe oferecer, que é toda a inspiração no desempenho do cargo”, disse ainda D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, à agência Ecclesia.
Também D. Manuel Linda, bispo das Forças Armadas, afirmou que a eleição do ex-governante é “uma extraordinária oportunidade para revigorar” a instituição. O arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, por sua vez, realçou que o português será “um suporte humanístico excecional e de que tanto necessitamos”.
Sendo António Guterres um católico convicto e assumido, põe-se a questão: até que ponto o Vaticano teve influência na escolha do próximo secretário-geral da ONU?
“Vão ser precisos muitos anos para percebermos o que realmente aconteceu, mas acho que seria absolutamente surpreendente, tendo em conta a importância do cargo e o perfil católico claramente assumido por António Guterres, que o Vaticano não se tivesse interessado pelo resultado final desta candidatura”, afirmou Miguel Monjardino ao i, relembrando que a Santa Sé tem “um lugar na Assembleia-Geral das Nações Unidas”.
Vaticano como “ator político”
Para o especialista em política internacional, o Vaticano é “um ator diplomático de primeiro nível na política internacional”, que prima pela discrição, mas cuja importância não pode ser ignorada. Recorde-se, a título de exemplo, o “papel essencial”que a Igreja Católica teve, através do Canadá, na reaproximação entre Washington e Havana. “Raramente é visível o verdadeiro papel do Vaticano na política internacional, mas se há capital muito bem informada sobre o que se passa no mundo é o Vaticano”, refere Monjardino. E realça: “O Vaticano nunca será indiferente ao facto de o candidato mais talentoso e mais bem posicionado ser um católico assumido. É muito raro, hoje em dia, encontrarmos à frente de grandes organizações internacionais uma pessoa que assume claramente a sua fé.”
Já o jornal italiano “La Stampa” refere que a relação entre a Santa Sé e as Nações Unidas “foi sempre forte” e assume que, com a escolha de Guterres, o Papa Francisco terá “um interlocutor de primeira linha” para lidar com assuntos que lhe são caros: “Os migrantes, aqueles que deixam os seus países por causa da guerra, das perseguições, dos desastres ambientais, da pobreza e das injustiças.” Já no fim do artigo, o jornal italiano recorda que, na sua juventude, o português esteve ligado a organizações universitárias católicas.
Ainda assim, a nomeação de Guterres, defende Monjardino, deveu-se “a um somatório de várias coisas”. Sublinha que o trabalho feito “no terreno” nos últimos dez anos na liderança do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e, consequentemente, a “proximidade desenvolvida com vítimas de guerras e conflitos”, é uma “mensagem muito de acordo com os Evangelhos e com a prática da Igreja Católica”.
A ideia também é partilhada por aquele que foi, no tempo de Guterres, um porta-voz da ala católica do PS. “O trabalho de Guterres com os refugiados e a postura que teve foram atitudes cristãs e que tudo têm a ver com o Evangelho”, afirma ao i Cláudio Anaia.
O currículo do ex-governante português, defende Anaia, terá sido o que mais pesou na sua escolha para secretário-geral, mas não descarta que “a boa formação que os católicos têm” possa ter influenciado a sua “personalidade” e a sua “formação de caráter”, algo também tido em conta para líder da ONU.
“António Guterres não vai deixar de ser católico por causa das suas funções. Tendo em conta as suas convicções, acredito que isso possa ter influência nas suas decisões”, disse Anaia, recordando as posições do ex-governante relativamente ao aborto.
Próximo passo: escolher a equipa
Mas os dias mais duros ainda estão para vir, refere Miguel Monjardino. “Nas próximas semanas e meses, em função da maneira como os lugares cimeiros da ONU forem distribuídos por Guterres, vamos começar a perceber melhor muitas das coisas que rodearam a sua candidatura vencedora”, explica o especialista, acrescentando que podem ter sido feitas “promessas” e “negociações”que irão transparecer na escolha da sua equipa mais próxima.
Monjardino fala mesmo num “dilema” que o português terá: escolher as melhores pessoas e manter o apoio das capitais mais importantes a nível mundial. “Os membros permanentes do Conselho de Segurança vão querer reservar para si alguns dos postos mais influentes. Já os membros da Assembleia-Geral, que apoiaram este processo transparente de seleção, acham que chegou finalmente a hora de terem acesso aos lugares importantes na organização. A arbitrar este diferendo estará Guterres.”
Aguardemos as cenas dos próximos episódios. Fica uma pequena nota em jeito de conclusão: será sinal divino Guterres ser oficialmente nomeado secretário-geral da ONU a 13 de outubro, data da última aparição de Nossa Senhora em Fátima?