Bob Dylan é o Nobel da Literatura 2016. Mais do que surpreendente, parece que ao atribuir o prémio a uma das figuras centrais da cultura popular, é o Nobel que procura ganhar um ícone, estar à sua altura, cativar uma audiência mais vasta rompendo as fronteiras do expectável. Numa altura em que é cada vez mais difícil centrar a atenção do mundo, a Academia Sueca junta-se à celebração do que hoje é para todos óbvio: que Bob Dylan foi pioneiro na música ao ter "criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana".
Dylan leva mais um troféu, um que, se ajudará ao mito, não poderá fazer muito mais pela sua popularidade. Afinal, a sua voz "fanhosa" é há muito uma das mais reconhecíveis do mundo, ele um dos artistas mais influentes da cultura popular, e depois de no ano passado a Academia Sueca ter dado um passo ousado ao escolher a bielorrusa Svetlana Alexievich, uma escritora que tem como fonte e destino da sua obra entrevistas a vítimas e protagonismas de acontecimentos traumáticos que marcaram o século XX, hoje em vez de se falar de livros, vai ouvir-se música. O trabalho está facilitado. A Academia Sueca cola-se ao génio de Dylan, que poderá ou não estar lá na hora de receber o prémio.
Sara Danius, secretária permanente da Academia Sueca, descreve o camaleónico Robert Allen Zimmerman — verdadeiro nome de Dylan — como um "grande misturador" de tradições, e alguém que ao longo de 54 anos tem vindo sempre a reinventar-se. E deu o álbum Blonde on Blonde como "um exemplo do seu brilhante modo de rimar, juntar refrões, e da sua genial forma de pensar".
Aos 75 anos, o músico torna-se o 259º norte-americano a ganhar um prémio Nobel, e Danius refere que, se a sua escolha pode causar alguma surpresa, "se andarmos para trás no tempo, uns 5 mil anos, descobrimos Homero e Safo. Eles escreveram textos poéticos para serem cantados, e o mesmo acontece com Bob Dylan. Ainda lemos Homero e Safo, e gostamos."
Depois de na última edição, os apostadores da empresa britânica Ladbrokes terem acertado no seu palpite de que seria a Alexievich a ganhar o Nobel (como já acontecera antes com J. M. G. Le Clézio, Herta Müller e Tomas Tranströmer, que estavam no topo das apostas da Ladbrokes, respectivamente em 2008, 2009 e 2011), o anúncio da atribuição do prémio a Bob Dylan foi uma grande surpresa, tendo em conta que este ano no primeiro lugar daquela casa de apostas estava o queniano Ngugi wa Thiong’o, seguido do japonês Murakami, o poeta Adonis, o romancista americano Don DeLillo e, em quinto lugar, o norueguês Jon Fosse.
Com toda a euforia e contentamento que a atribuição do maior galardão literário a Dylan irá certamente causar, especialmente junto dos fãs, o certo é que nesta escolha algo se perde na missão do Nobel, sendo difícil argumentar que a Academia Sueca consegue fazer mais justiça pelo génio do músico. O certo é que, neste dia, o mundo perdeu a possibilidade de descobrir, ler e celebrar algum escritor que nos falará do seu mundo, abrirá para mais gente uma perspectiva nova, como aconteceu no caso de Alexievich. O mais polémico desta decisão do júri do Nobel é poder dizer-se que a Academia Sueca quis ser celebrada na sua ousadia de propor uma escolha atípica, irreverente. Pode, por isso, ser acusada de ceder a um certo embalo mediático.
"Enquanto artista, ele é extremamente versátil; ele tem permanecido activo enquanto pintor, actor e guionista", refere o anúncio da Academia Sueca. "Dylan goza do estatuto de um ícone. A sua influência na música contemporânea é profunda, e ele é o objecto de um fluxo constante de bibliografia passiva."
Outra perspectiva, será pensar que nestes dois últimos anos têm-nos mostrado uma Academia com uma visão de literatura particularmente diferente da que nos habituámos a ver. Apesar de nem sempre ter conseguido escapar à surpresa, com a atribuição do Nobel a Alexievich e, agora, a Bob Dylan, a Academia parece mostrar que a abertura de horizontes proporcionada pelo primeiro Nobel atribuído a uma escritora de não-ficção na área do jornalismo literário é agora seguida por um prémio atribuído a um poeta que conhecemos mais através da música. Independentemente do acerto ou não da escolha – entre os músicos-poetas havia muito por onde escolher, já que mesmo com David Bowie, Lou Reed e Elliot Smith já desaparecidos, ainda nos sobra Leonard Cohen, Nick Cave, Stephen Malkmus, Jarvis Cocker, entre outros –, não podemos deixar de saudar os horizontes alargados que a Academia parece estar a dar à palavra como expressão artística. A literatura é, como disse o príncipe, "palavras, palavras, palavras", que tanto podem ser lidas, como ditas e, até cantadas. A poesia, muito em particular, é indissociável da sua expressão musical e, neste sentido, Bob Dylan está longe de ser o primeiro músico a ganhar um Nobel da Literatura.
E se Rabindranath Tagore, o primeiro autor não-europeu a conquistar, em 1913, o Nobel da Literatura, também escreveu letras de canções, Dylan é verdadeiramente o primeiro a ganhar o Nobel devido sobretudo ao valor poético das suas letras. Curiosamente, o facto de ser um dos crónicos candidatos nas listas das casas de apostas havia-se tornado há muito uma das piadas que se faziam sobre as lógicas da Academia Sueca. Neste momento, as reacção ao anúncio feito esta manhã em Estocolmo têm mostrado um grande fosso na divisão das opiniões. O romancista indiano Hari Kunzru disse no Twitter: "Esta parece a mais ridícula atribuição do Nobel desde que o deram ao Obama por não ser o Bush". O romancista norte-americano Jason Pinter escreveu: "Se o Bob Dylan pode ganhar o Nobel da Literatura então acho que o Stephen King devia ser eleito para o hall of fame do rock n' roll". Ainda mais duro, o romancista escocês Irvine Welsh, escreveu nesta rede social: "Sou um fã do Dylan, mas isto é uma atribuição imbecil e que tresanda a nostalgia e foi secretada pelas próstatas senis de uns tolinhos hippies."
Por sua vez, Miguel Esteves Cardoso já tomou posição defendeu a Academia: "Dantes toda a literatura se dividia em categoriazinhas de merda – canções, contos, ensaios, reportagens, ficções, peças teatrais, poesia. O júri do Nobel tem feito o enorme favor de voltar a confundir tudo. No ano passado deu o prémio à jornalista Svetlana Alexievich, uma grande escritora que utiliza as entrevistas como matéria-prima para construir textos empolgantes sobre a condição humana. Está fora de moda falar na eternidade mas tanto Alexievich como Dylan serão imortais. Escrever é escrever. Um mau poeta será sempre pior do que um bom jornalista. Dylan é inegavelmente um grande escritor. A Academia sueca está a usar o Prémio Nobel para restaurar a literatura. Tomara que regresse à literatura oral. As histórias que não são escritas também podem ser grandes e imortais."
Salman Rushdie, o romancista britânico de origem indiana que esteve recentemente em Portugal a convite do Folio, e que é um dos escritores que também surge amiúde nas listas de eventuais candidatos ao prémio, saudou no Twitter a Academia pela escolha: "De Orfeu a Faiz, canção e poesia há muito estão intimamente ligadas. Dylan é um brilhante herdeiro da tradição bárdica. Grande Escolha, Nobel".
A atribuição do prémio este ano foi adiada em relação a às anteriores edições, passando da quinta-feira passada para esta. Logo surgiram rumores de que nas reuniões dos 18 membros do júri poderia estar a existir alguma dificuldade em chegar-se a um consenso, talvez porque a entrega do galardão este ano seria particularmente polémica. Entretanto, o porta-voz da Academia Sueca, Per Wästberg, veio esclarecer que o atraso se ficou a dever meramente a razões do calendário das reuniões dos 18 membros da instituição.
No Facebook, José Mário Silva, crítico do "Expresso", entende e partilha com MEC a ideia de que a Academia Sueca revelou corajem nesta escolha ao tentar "redefinir as fronteiras do que podemos considerar literatura", mas sublinha que é "um caminho arriscado, que pode banalizar o mais importante prémio literário do mundo". Adianta ainda que "no campo dos ícones da música popular que escrevem letras literárias, havia outras escolhas possíveis e melhores: Leonard Cohen, por exemplo (que também é poeta-poeta e romancista), ou até Chico Buarque (letrista extraordinário e bom ficcionista). O problema com Bob Dylan está na desmesura da sua obra. Nos melhores momentos, Dylan é um poeta surpreendente, com rasgos de génio. Mas os melhores momentos perdem-se na enxurrada e são cada vez menos com o passar dos anos. Se até musicalmente o seu trabalho me parece muitíssimo desigual, literariamente então, nem se fala. Passado o choque, o gesto da Academia merece ser discutido, analisado. É em si mesmo interessante, na sua radicalidade. Quem gosta de literatura, porém, não pode deixar de se sentir desiludido. Tantos extraordinários escritores que continuam à espera, muitos deles já sem tempo útil de vida para receberem o prémio. É uma pena. Um desperdício."
O escritor e poeta António Gregório também vê o risco de uma diluição das diferentes esferas artísticas: "A questão é que se falamos em poesia no sentido 'estrito', quer dizer, um autor que se tenha distinguido pela sua obra escrita (não fui eu que pus o nome de Literatura ao prémio), haveria poetas sem qualquer dúvida mais importantes; se a ideia é poesia em sentido lato, abre-se uma nova ala de injustiças: por que raio nunca foi atribuído a Andrei Tarkovski, por exemplo; alguém nega que ele era um poeta?"
Já o escritor e crítico literário Bruno Vieira Amaral defendeu que "faz tanto sentido atribuir o Nobel a Bob Dylan invocando Homero e Safo como atribuí-lo a Quentin Tarantino (os guionistas vêm já a seguir) invocando Sófocles e Ésquilo". E voltou à carga, novamente no Facebook, horas depois para rematar: "Eu também acho que alguns movimentos do Messi são bailado, mas não o ponham no Bolshói."
Finalmente, houve algumas reacções que chamam a atenção para o simples facto de a controvérsia estar a ser estimulada pelo facto de, desta vez, o prémio ter sido atribuído a alguém que já todos conhecem: "era menos polémico se tivesse sido atribuído a alguém que nunca ninguém leu."
Mas se já todos sabemos quem é Dylan, se poucos se lembrarão da primeira vez que ouviram uma das suas canções, se gerações cresceram a ouvi-lo, só aqueles que realmente se deixaram seduzir e foram além da cortina, penetrando no universo tão particular quanto profundo deste artista que vive da constante reinvenção, de nunca se deixar apanhar enraizado num género, encerrado em fórmulas, podem apreciar a verdadeira dimensão transgressora e o fulgor poético de toda a sua obra. A música torna-se assim apenas um aspecto, talvez o mais aparente, de uma proposta que abarca uma série de outras abordagens e visões. Abrindo as suas canções com um bisturi como a um paciente adormecido a éter sobre a mesa, torna-se subitamente claro como estas são organismos vivos que se estruturam à volta das letras, aquilo que continua a alimentar o seu significado, e que nos convencem que a arte de Dylan assenta nos mesmos valores que inspiram desde sempre a tradição literária.
Nascido em Duluth, no Minnesota, em 1941, no seio de uma família de proveniência russa e judaica, o jovem Zimmerman trocou o nome de família pelo primeiro nome de um dos poetas que mais o inspirou: "Dylan Thomas/ que rasgou o olho com uma rosa,/ a quem os jornalistas perguntavam/ se tinha lido Villon, o louco galês alucinado/ com os bolsos vazios/ e alma de garoto, bebendo para esquecer o mundo e a idade adulta." Isto segundo o retrato feito por outro poeta, Roger Wolfe.
Ora, o jovem ainda antes de ser músico já lia, lia tudo o que lhe chegava às mãos. Antes de saber tocar qualquer instrumento, começou pela língua, pelos trabalhos de apurar, polir o minério verbal e trazer à superfície uma verdade tão íntima que fosse capaz de transbordar e adquirir um peso universal. Os primeiros poemas escreveu-os quando tinha apenas 10 anos. Recebeu a sua primeira guitarra aos 14 anos, e do mesmo modo que fez o seu caminho na literatura, aprendeu a tocar guitarra e depois piano sozinho. As suas primeiras actuações foram como membro de bandas de garagem nos tempos do liceu. Foi só então que iniciou as suas buscas pelas origens do rock n' roll e assim chegou a Woody Guthrie, que viria ser a sua primeira grande influência musical, e quem o levou a tornar-se o herói da canção folk que viria a catapultá-lo como a suposta voz de uma geração. Coroa de espinhos que, de resto, ele logo se recusou a envergar.
Depois de ter frequentado vagamente um curso na Universidade do Minnesota, em 1961 deixou a faculdade e partiu para Nova Iorque, dando início à sua carreira musical com actuações nos clubes e cafés de Greenwich Village. O primeiro álbum, Bob Dylan, foi lançado no ano seguinte, que logo foi sucedido por uma série de outros trabalhos que são hoje tidos como obras de um inédito virtuosismo, incluindo Blonde on Blonde, em 1966, e Blood on the Track, em 1975, e que fizeram dele um dos artistas mais influentes da música popular.
O comité do prémio Nobel destacou entretanto a forma como os álbuns de Dylan "andam em torno de temas como as condições sociais do homem, religião, política e amor". E já antecipando a chuva de críticas pelo facto de a sua influência se ter construído enquanto músico e não enquanto escritor, o comité acrescentou que as letras de Dylan têm sido "continuamente publicadas em sucessivas edições" e que, "além da sua grande produção de álbuns, Dylan publicou livros experimentais como "Tarântula" (1971) e a reunião "Escritos e Desenhos" (1973), bem como um volume de crónicas (2004), que relata memórias dos primeiros anos em Nova Iorque e que proporciona vislumbres da sua vida no centro da cultura popular".
Enquanto no "The Telegraph", o colunista Tim Stanley defendia que "um mundo que entrega a Bob Dylan um Prémio Nobel é o mesmo mundo que nomeia Trump para presidente", no "The Guardian", Richard Williams explica como, tendo bebido no passado, recriando melodias, imagens, personagens e atitudes, Dylan conseguiu juntar as componentes para um motor capaz de correr na superfície de mudança constante do presente. E diz que a fusão do que aprendeu com Woody Guthrie com o que descobriu com os poetas simbolistas e com a energia do rock n' roll, foi só uma das suas encarnações, eventualmente aquela que mais marcou o imaginário da cultura popular como o Dylan "perfeito", o mais icónico. Contudo, nota que mesmo depois disso, e em canções como 'Tangled Up in Blue' (1975), 'Blind Willie McTell' (1983) e 'Cross the Green Mountain' (2002), ele continuou a provar a sua criatividade e a explorar formas de brincar com o tempo, com a sua voz e perspectiva, expandindo mais ainda as possibilidades da canção, desarmando quaisquer críticas que venham de novo a erguer-se contra ele num momento em que é alvo de mais um distinção, e provavelmente a maior da sua carreira.