O campeão português


Além das suas qualidades únicas, Guterres beneficiou da universalidade da lusofonia para ser eleito secretário-geral da ONU


1) A eleição de António Guterres para número um da ONU é um feito inédito que é impossível ignorar neste espaço, ainda que pareça estar tudo dito sobre o assunto. Mesmo assim, vale a pena enfatizar que na base desta importantíssima vitória está, em primeiro lugar, a personalidade de Guterres e a sua experiência internacional, que lhe advém da função de primeiro-ministro português, da sua intervenção no quadro da União Europeia, do seu desempenho na Internacional Socialista e, sobretudo, do seu papel no ACNUR, a organização da ONU para os refugiados, onde foi incansável no meio de um drama enorme e de uma indiferença internacional de raro cinismo enquanto o problema não chegou aos países da Europa rica.

Desde que renunciou ao cargo de primeiro-ministro em Portugal para fugir ao que chamou “pântano”, Guterres conseguiu, como sempre ambicionou, desempenhar funções políticas internacionais em favor de causas humanitárias, consonantes com os princípios católicos a que se terá mantido fiel, embora de forma mais discreta, como é próprio de quem exerce funções supranacionais.

À volta da candidatura de Guterres à ONU mobilizaram-se todas as forças políticas e sociais portuguesas, numa comunhão rara dinamizada pelo Presidente da República, o governo e a nossa diplomacia, através, nomeadamente, de embaixadores estratégicos, organizados por Freitas Ferraz, o assessor diplomático de sempre de António Guterres. Ele e as suas capacidades ímpares de comunicação, somadas a esses apoios nacionais, seriam sempre uma excelente base de partida para uma candidatura a secretário-geral da ONU. Nunca seria fácil derrotá-lo, apesar da conspiração que Merkel urdiu e que prova, mais uma vez, que confiar na Alemanha é sempre uma coisa perigosa, como nunca cessou de proclamar o general De Gaulle. Mas hoje importa sublinhar que Guterres também beneficiou muito por ser oriundo do espaço lusófono e da abrangência que essa circunstância traz. No Conselho de Segurança, por exemplo, estavam, para além dos cinco membros permanentes com direito de veto, países como Angola, o Senegal, a Espanha, a Venezuela, o Uruguai e o Japão. Historicamente, todos tiveram contactos com Portugal, conhecendo o povo e sua universalidade, de que Guterres é um exemplo.

No quadro da CPLP, cada país, tirando o Brasil, terá entretanto atuado e influenciado na sua região natural no sentido de granjear apoios ao candidato português, que também foi beneficiário de desempenhos positivos de muitos portugueses à frente de grandes organizações políticas, como Barroso na União Europeia, Freitas do Amaral na Assembleia-Geral da ONU, Nascimento Rodrigues na OIT, Mário Soares na Internacional Socialista e tantos outros, alguns dos quais não portugueses mas lusófonos. É o caso, nomeadamente, de Carlos Lopes, um guineense que chegou a secretário-geral adjunto das Nações Unidas.

Portugal tem também o mérito raro de ter sido protagonista e mediador em processos de paz ou de independência de países de que foi colonizador, como Angola, Moçambique, Guiné e Timor, o que, convenhamos, não é comum em outras situações análogas, sobretudo passado tão pouco tempo sobre a descolonização.

Claro que Guterres vale fundamentalmente por si próprio, mas convenhamos que no seu ADN há de ter muito do sangue daqueles que partiram e correram mundo, conquistando, instalando-se, confundindo-se, misturando-se, comerciando e dialogando. E é precisamente graças a esta última característica, a do diálogo, que Guterres poderá afirmar- -se em termos mundiais, conferindo à ONU uma renovada importância que é essencial para a humanidade.

2) Há corporações que têm de aprender que gritar muito não chega para ter razão. Vem isto a propósito do conflito que opõe os taxistas ao governo, a propósito da existência de serviços como a Uber e a Cabify. Tendo certas razões do ponto de vista formal quanto à distorção da concorrência que estas plataformas de transporte criaram até agora no setor dos táxis, e que futuramente farão em muito outros, há que reconhecer que dificilmente se encontra noutra atividade um desempenho profissional tão lamentável como nos motoristas de táxi, em que abundam comportamentos agressivos com os clientes, com outros condutores e com peões. Além disso, muitos carros de praça (nomeadamente em Lisboa) são velhos, malcuidados e potencialmente perigosos para os passageiros. Enquanto classe, os taxistas hostilizam tudo o que seja potencialmente concorrente, como se vê pelo comportamento em relação aos condutores (muitos deles igualmente agressivos) dessa nova praga oriental e poluente chamada tuk-tuk. Estes meios, aliás, só deveriam circular se fossem elétricos. Se a Uber servir nem que seja para melhorar a urbanidade dos taxistas, então já terá valido a pena o seu aparecimento. Quanto ao resto, cabe ao governo fazer com que haja lugar para todos sem distorção da concorrência, que é exatamente o ponto em que os industriais de táxi têm razão. Mas um ministro que chama para negociar quem está criminosamente a bloquear estradas, a agredir concorrentes e a ameaçar polícias não é obviamente alguém com um mínimo de experiência política. Estamos num tempo de afetos, é certo. Mas haja limites, para que não volte a repetir-se na próxima segunda-feira o que aconteceu nesta última.