O dia em que Frau Merkel começou a aprender português


Para os que se dedicam a adivinhar o futuro pela leitura das entranhas das organizações internacionais, as últimas 48 horas têm sido pródigas. Naquele que terá sido o seu momento menos bom em política internacional, Frau Merkel achou que a ONU seria uma extensão da União Europeia e que a Alemanha teria no Conselho de…


Para os que se dedicam a adivinhar o futuro pela leitura das entranhas das organizações internacionais, as últimas 48 horas têm sido pródigas. Naquele que terá sido o seu momento menos bom em política internacional, Frau Merkel achou que a ONU seria uma extensão da União Europeia e que a Alemanha teria no Conselho de Segurança um assento permanente. No processo de escolha do novo secretário--geral, decidiu explorar os desejos dos EUA (que nunca esconderam a preferência por uma mulher) e da Rússia (que apostava na rotatividade entre grupos geográficos, considerando que o novo SG deveria ser oriundo do grupo “Europa de Leste”, mesmo que a queda do Muro de Berlim tenha retirado dimensão operacional a esta categoria). E à vigésima quinta hora promoveu uma candidata certificada pelo Partido Popular Europeu, do sexo feminino e proveniente do grupo da “Europa de Leste”.

Foi uma manobra arriscada, face ao direito de veto dos membros permanentes do CS, num momento em que as tensões entre os EUA e a Rússia se exacerbavam, o que poderia dar origem a um cruzamento de vetos dirigidos às búlgaras, com os EUA a vetarem Bokova e a Rússia a vetar Georgieva, e todo o processo a deslizar para o final do mês de outubro. Não se chegou a tanto. Nos bastidores, como sempre, houve um acordo entre os EUA e a Rússia, acordo cujos contornos não foram anunciados. Admito que passe pela gestão da guerra civil na Síria (meramente por acaso, ontem cessaram os bombardeamentos do governo de Assad à cidade de Alepo) e pela recuperação de parte do estatuto de paridade entre os EUA e a Rússia à mesa das negociações internacionais (propósito que justificou a intervenção russa na Síria). De caminho, durante a presidência russa do CS, os 15 membros, com os P5 na fila da frente, puderam, pela boca de Churkin, anunciar uma solução consensual com respeito formal pelo novo procedimento “mais transparente” de escolha do SG. 

Neste processo há que constatar o sucesso da candidatura de Guterres, não só em relação ao resultado final em que, portuguesmente, todos se uniram desde ontem, em contraponto ao desânimo dos dias anteriores, mas também em relação ao mérito absoluto (dele já deixei nestas páginas testemunho, muito antes do anúncio público da candidatura), ao mérito relativo (era de longe o melhor candidato, facto que a aparição tardia de Georgieva só realçou) e ao mérito procedimental (o de ter trabalhado bem a candidatura e de ter porfiado, com respeito pelo princípio básico das negociações internacionais: “It ain’t over till the fat lady sings”).

Os contornos do “package deal” serão comunicados em devido tempo ao novo SG e incluirão posições na hierarquia da ONU, a distribuir por amigos e protegidos dos EUA e da Rússia. Tal dará o tom da margem de manobra que será concedida a Guterres. A ONU ganhou um excelente SG, mas a restante arquitetura da organização não sofreu alterações. Convirá ter presente esta realidade para que a gestão das expetativas, justificadamente elevadas, seja feita com respeito pelas possibilidades concedidas pela Realpolitik.

E quando, em setembro de 2017, Merkel perder as eleições para o Bundestag (ou nem sequer se candidatar), será chegado o momento de passar à “vida civil”. A Alemanha mantém um número muito razoável de fundações várias, de fins redondos, e cujas administrações podem ser acumuladas com cargos internacionais menos bem remunerados. Como o de representante do SG da ONU para a promoção da igualdade de género nos Balcãs orientais.

Obrigadinho.


O dia em que Frau Merkel começou a aprender português


Para os que se dedicam a adivinhar o futuro pela leitura das entranhas das organizações internacionais, as últimas 48 horas têm sido pródigas. Naquele que terá sido o seu momento menos bom em política internacional, Frau Merkel achou que a ONU seria uma extensão da União Europeia e que a Alemanha teria no Conselho de…


Para os que se dedicam a adivinhar o futuro pela leitura das entranhas das organizações internacionais, as últimas 48 horas têm sido pródigas. Naquele que terá sido o seu momento menos bom em política internacional, Frau Merkel achou que a ONU seria uma extensão da União Europeia e que a Alemanha teria no Conselho de Segurança um assento permanente. No processo de escolha do novo secretário--geral, decidiu explorar os desejos dos EUA (que nunca esconderam a preferência por uma mulher) e da Rússia (que apostava na rotatividade entre grupos geográficos, considerando que o novo SG deveria ser oriundo do grupo “Europa de Leste”, mesmo que a queda do Muro de Berlim tenha retirado dimensão operacional a esta categoria). E à vigésima quinta hora promoveu uma candidata certificada pelo Partido Popular Europeu, do sexo feminino e proveniente do grupo da “Europa de Leste”.

Foi uma manobra arriscada, face ao direito de veto dos membros permanentes do CS, num momento em que as tensões entre os EUA e a Rússia se exacerbavam, o que poderia dar origem a um cruzamento de vetos dirigidos às búlgaras, com os EUA a vetarem Bokova e a Rússia a vetar Georgieva, e todo o processo a deslizar para o final do mês de outubro. Não se chegou a tanto. Nos bastidores, como sempre, houve um acordo entre os EUA e a Rússia, acordo cujos contornos não foram anunciados. Admito que passe pela gestão da guerra civil na Síria (meramente por acaso, ontem cessaram os bombardeamentos do governo de Assad à cidade de Alepo) e pela recuperação de parte do estatuto de paridade entre os EUA e a Rússia à mesa das negociações internacionais (propósito que justificou a intervenção russa na Síria). De caminho, durante a presidência russa do CS, os 15 membros, com os P5 na fila da frente, puderam, pela boca de Churkin, anunciar uma solução consensual com respeito formal pelo novo procedimento “mais transparente” de escolha do SG. 

Neste processo há que constatar o sucesso da candidatura de Guterres, não só em relação ao resultado final em que, portuguesmente, todos se uniram desde ontem, em contraponto ao desânimo dos dias anteriores, mas também em relação ao mérito absoluto (dele já deixei nestas páginas testemunho, muito antes do anúncio público da candidatura), ao mérito relativo (era de longe o melhor candidato, facto que a aparição tardia de Georgieva só realçou) e ao mérito procedimental (o de ter trabalhado bem a candidatura e de ter porfiado, com respeito pelo princípio básico das negociações internacionais: “It ain’t over till the fat lady sings”).

Os contornos do “package deal” serão comunicados em devido tempo ao novo SG e incluirão posições na hierarquia da ONU, a distribuir por amigos e protegidos dos EUA e da Rússia. Tal dará o tom da margem de manobra que será concedida a Guterres. A ONU ganhou um excelente SG, mas a restante arquitetura da organização não sofreu alterações. Convirá ter presente esta realidade para que a gestão das expetativas, justificadamente elevadas, seja feita com respeito pelas possibilidades concedidas pela Realpolitik.

E quando, em setembro de 2017, Merkel perder as eleições para o Bundestag (ou nem sequer se candidatar), será chegado o momento de passar à “vida civil”. A Alemanha mantém um número muito razoável de fundações várias, de fins redondos, e cujas administrações podem ser acumuladas com cargos internacionais menos bem remunerados. Como o de representante do SG da ONU para a promoção da igualdade de género nos Balcãs orientais.

Obrigadinho.