Há uns dias, após ter almoçado com um amigo de longa data, hábito que mantemos já vai para 20 anos, decidi, após separarmo–nos, caminhar pela rua, aproveitando para refletir no que tínhamos acabado de conversar.
O meu amigo é um político profissional, as suas opções ideológicas estão nos antípodas das minhas, os nossos percursos partidários são naturalmente diferentes, como são diferentes as nossas ambições enquanto cidadãos e seres políticos.
O nosso entendimento e amizade sustenta-se nos princípios, para os dois determinantes, da liberdade, da soberania da pátria e da necessidade de aplicar políticas que salvaguardem os mais pobres e fragilizados socialmente e lhes permitam romper com o aterrorizante e interminável ciclo de miséria e de exploração.
Para além disso, sempre achei algo perversa e doentia a beata convicção de que um amigo se abandona ou se renega porque tem opinião diferente da nossa e que somos moralmente superiores na nossa visão do mundo e na nossa intervenção cívica apenas porque nos identificamos com determinado projeto ideológico e partidário, o qual, muitas vezes, a maior parte de nós não somos capazes de explicar para além da cor da camisola.
A verdade é que a sua formação política nunca existiu realmente. Ou seja, substituíram estudo por propaganda, o debate por insulto, a dúvida pela fé, a contestação por disciplina, e tudo isto não os transformou em líderes mobilizadores, mas em agentes de ódio e medo do outro.
Fazia muito calor e, no fim da rua, desemboquei no Jardim da Parada, designação popular para o jardim de Campo de Ourique. Tentado pelas sombras das sequoias e ciprestes e sob a vigilância da estátua da Maria da Fonte, sentei-me a descansar.
Foi aí que, matutando nas minhas reflexões, elevei a vista e, de repente, como a uma pessoa dormida que abre os olhos em pleno sono, deparei com o esplendoroso contraste das árvores no outono.
Uma paleta de cores do verde ao vermelho e do amarelo ao ocre com que aquele jardim do bairro do centro de Lisboa estava vestido.
Nesse momento tive a dolorosa convicção de que em demasiadas ocasiões vemos mas não aprendemos a olhar, pensamos mas não conseguimos sentir, caminhamos mas não observamos.
Vivemos sem estarmos conscientes de muitas coisas que acontecem à nossa volta, seja porque estamos submersos nos nossos problemas ou porque não captamos o que está por detrás das aparências.
Protegemo-nos da realidade externa mediante uma capa de insensibilidade que nos isola porque não queremos que nada perturbe as nossas rotinas quotidianas; porém, na medida em que vamos perdendo a capacidade de sentir as coisas, começamos a estar mortos.
Porque viver é experimentar a dor, o medo e a frustração, elementos consubstanciais a todo o ser humano.
O escritor sueco Henning Mankell conta que estava a navegar num rio caudaloso em África quando falhou o motor e o barco ficou à deriva, e assim se dirigiu para um grupo de hipopótamos que teriam destroçado a embarcação e morto os seus ocupantes. Porém, a poucos metros dos animais, o motor pôs-se milagrosamente em funcionamento e conseguiram salvar-se.
A história reflete a débil fronteira que separa a vida da morte. Não temos a mínima garantia de que vamos estar vivos na semana que vem nem do que pode acontecer, mas estamos tentados a pensar que ficamos protegidos pelas nossas rotinas e que tudo acontece segundo um guião que podemos prever.
No entanto, sermos ignorantes, fugirmos para guetos artificiais, com medo do diferente e receio do outro, não nos salva, só adia o inevitável.
Somos pensados pelos nossos pensamentos e, por isso, temos opção. É sempre preferível abrir os olhos a fechá-los para evitar o sofrimento e a injustiça.
Saber o que se passa connosco e porque se passa é melhor do que refugiarmo-nos na inconsciência e na indiferença.
O escritor Stefan Zweig, angustiado pela ascensão nazi-fascista, escreveu na sua nota de suicídio: “Eu, demasiado impaciente, vou-me embora antes.”
Como desejo cumprir o meu tempo, prefiro o que escreveu Montaigne: “Só morremos porque estamos vivos, e isso é sempre um conforto.”