É pena. O que se passa por Espanha nos dias que correm representa, em versão condensada e acelerada, o drama das democracias ocidentais contemporâneas. A erosão, por via da crise económica e da corrupção generalizada, da base de apoio dos partidos tradicionais (PSOE e PP), a importância dos partidos de protesto (Podemos e Ciudadanos) e a consequente atomicidade do espetro partidário obrigam à negociação de coligações ou de alianças complexas. Depois de duas eleições falhadas, está certificado o óbito da alternância entre PSOE e PP na Moncloa. Decorridos mais de nove meses desde as primeiras eleições e três desde as segundas, não há nada parecido com um governo que goze de apoio parlamentar.
As eleições do passado domingo na Galiza e no País Basco contribuíram sobremaneira para reduzir a já diminuta esperança de vida de Pedro Sánchez como líder do PSOE. Os maus resultados nas eleições autonómicas, somados aos piores resultados de sempre a nível nacional, levaram o baronato do PSOE a vociferar contra a liderança. À cabeça surgiu, em on, Felipe González, acusando Sánchez de lhe ter mentido e de não saber condicionar um novo governo do PP que dependeria da abstenção do PSOE para sobreviver.
Sánchez, para obrigar os contestatários a irem a jogo e para salvar a pele, anunciou um congresso extraordinário para 2 e 4 de dezembro, antecedido de eleições primárias para a liderança em outubro. A inspiração terá sido colhida na prática do Labour, onde Jeremy Corbyn conseguiu ser reeleito pelos simpatizantes contornando a fronda dos deputados e dos barões. Mas o PSOE não é o Labour e o baronato que integrava a comissão executiva nacional do PSOE demitiu-se em massa, e Sánchez viu esta semana partirem metade mais um (17!) do executivo federal dos socialistas. O exercício visava obrigar Sánchez a demitir-se da função de secretário-geral. Mas, convirá repeti-lo, o PSOE não é o Labour e nas últimas 48 horas assistimos a uma exegese bizantina dos estatutos do PSOE, com interpretações para todos os gostos no que respeita às consequências da falta de quórum no seu executivo federal. Por via das dúvidas, Sánchez anunciou ontem uma revisão da sua proposta de calendário eleitoral: eleições primárias a 23 de outubro e congresso a 12 e 13 de novembro. Amanhã reúne o que sobra da comissão executiva federal do PSOE para aprovar o calendário eleitoral – que não deixa muito tempo para a apresentação de candidaturas alternativas, ou de uma candidatura alternativa forte negociada entre os diversos barões e que seria, muito provavelmente, a da líder do PSOE na Andaluzia, Susana Díaz. Sem alternativas viáveis de governo, Filipe vi terá de marcar novas eleições até ao final de outubro.
Sem querer apoucar o talento negocial de António Costa, sempre se dirá em abono de Sánchez que a negociação de uma coligação (ou de um acordo de incidência parlamentar) entre PSOE, Podemos (que chegou a ambicionar ter mais votos do que o PSOE) e Ciudadanos junta gente mais variada no albergue espanhol do que PS, BE e PCP no hostel da Lusitânia.
E, para os mais distraídos, valerá a pena pensar que aquilo que muitos barões do PSOE propõem (o fatiar lento do kebab de um governo minoritário do PP até que se antevejam eleições antecipadas) corresponde, virado do avesso, ao sonho húmido da coligação PàF. O kebab político dos governos minoritários poderá ser um acepipe excelente para políticos ambiciosos, mas não é certo que seja recomendável para a dieta de eleitores e contribuintes.
Escreve à sexta-feira