Às vezes sentimos que não temos nada a perder. Talvez as circunstâncias que nos tenham levado a esse estado não tenham sido as melhores ou, pelo menos, as mais fáceis – o emprego que se foi, o cancro que apareceu ou o marido que ainda não sabe, mas que está a caminho da casa da mãe dele –, mas isso não importa. Há momentos na vida em que não temos nada a perder. E normalmente é porque perdemos tudo ou talvez tenhamos perdido só metade, mas o suficiente para nos saber a tudo. Não importa. Há momentos na vida em que não temos nada a perder.
E se, normalmente, sentimos essas alturas como as piores de sempre, desejando, rogando “que isto acabe de uma vez”, deveríamos era fazer exatamente o contrário: agradecer esta etapa por que estamos a passar.
Saber abraçar as “fases-merda” da nossa vida é um ato sábio. É saber que, mais tarde ou mais cedo, essa fase serviu para alguma coisa e que talvez tenha sido o momento mais revelador e verdadeiro que tenhamos vivido. E, a dado momento, até teremos saudades dessa época. Querem um conselho meu? Tirem fotografias a vocês mesmos, no vosso pior. A sério, sem medo, sem filtros e sem photoshop. Guardem o momento em que perderam as defesas, em que pararam de responder de forma politicamente correta, em que deixaram de dizer que estava tudo bem quando, na verdade, não estava. Imortalizem a fase em que perceberam que não tinham nada a perder.
Registem a hora, o minuto, o segundo em que tocaram no fundo do poço – porque nesse instante tocaram também no vosso profundo, no vosso fundo real. No vosso ser. Imortalizem a fase em que perceberam que não tinham nada a perder.
Desconfio que, quando não temos nada a perder, tornamo-nos mais espontâneos, loucos, reais. Aparecemos sem sermos convidados, com uma garrafa na mão e uma declaração improvisada, porque não temos nada a perder; pintamos o cabelo de azul porque não temos nada a perder; imergimos numa busca pela nossa espiritualidade, de mochila às costas e com bolhas nos pés, porque não temos nada a perder; sentamo-nos ao piano, que antes era só para decorar, e improvisamos porque não temos nada a perder.
Falava há uns tempos com um amigo meu sobre o sonho que ele tem de ter o seu próprio negócio. Criativo, entusiasta, positivo, trabalhador, inteligente. A meu ver, tem tudo para avançar. Como não aguento ouvir falar sobre um sonho sem fazer imediatamente de claque, bater as palmas e cantar o hino, lá me pus eu a incentivar, a apelar ao sonho e à coragem de o viver. Mas ele olhou para mim e rematou a conversa concluindo: “Agora não posso fazer nada disso. Tenho muito a perder.”
Acho que agradeci não ter carro, nem contrato, nem emprego fixo, nem achar que tenha muito a perder. Agradeci saber que não tenho nada a perder, restando–me apenas a esperança de manter o meu sonho acesso.
Quis dizer-lhe que ele também não tem nada a perder. Não o fiz. Acabamos todos, a dado momento, por descobrir isso sozinhos. E quase sempre no dia em que achamos que já perdemos tudo.
Blogger. Escreve à quinta-feira