A propósito do livro de José António Saraiva


Neste complexo emaranhado de valores, moral e ética, de interesses não confessáveis, medos renascidos e direitos civis ajustados, vivemos sufocados numa informação especializada em desesperança


Quando pensamos que já vimos tudo e já nada nos pode surpreender, eis que a vida nos sacode e demonstra que estamos enganados e que trocámos, uma vez mais, o acessório pelo fundamental. 

Amolecemos, vivemos entre a neblina que nos impede de ver com limpidez e só nos dá a imagem desfocada do outro, e o ruído em que confundimos o berro com a mensagem. 

Com frequência esquecemos que a nossa informação e conhecimento é uma ínfima parte do saber universal e que, muitas vezes, aquilo que hoje damos como definitivo e óbvio não o era há seis meses atrás, quando dávamos como absoluta e peremptória a visão particular que tínhamos de todas as coisas.

Neste complexo emaranhado de valores, moral e ética, de interesses não confessáveis, medos renascidos e direitos civis ajustados, vivemos sufocados numa informação especializada em desesperança que relativiza a nossa desgraça no drama dos outros e adverte para a nossa impotência frente à poderosa globalização do mal e do caos. Querem homens da cor do silêncio. 

Neste sábado assisti a um documentário sobre os últimos dias dos realojados do Bairro da Boavista em Lisboa, trabalho que constituiu a prova de aptidão artística do curso de Comunicação Audiovisual, Cinema e Vídeo da Escola Artística António Arroio.

Confesso que a curiosidade era maior que a expectativa, mas o título do filme, “Na Casa Atravessei as Estações”, retirado do verso de um poema de Ruy Belo, devia ter-me alertado.

Foi uma revelação. Conforme o filme nos apresenta as mulheres do Boavista, personagens geniais e genuínas de um grande documentário sobre a dignidade, nós vamos ficando com a sensação de estar ali e de as conhecer de toda uma vida.

O trabalho é feito com uma sensibilidade humana e uma destreza técnica que nos reconcilia com o quotidiano. Emociona e faz-nos sorrir, mas é a consideração com que as protagonistas são retratadas que marca a diferença e nos toca. 

As jovens realizadoras nunca interferem, são como seres alados que nos oferecem observar sem filtro aquelas mulheres, e elas, cúmplices, alinham no jogo. Entende-se uma confiança partilhada.

É preciso ver para entender, e então quando se sabe que foi realizado e produzido por três jovens alunas, todas de 17 anos, Inês Araújo, Leonor Pereira e Ana Marques, percebe-se o desconcerto que foi para o júri, constituído por professores da António Arroio e convidados da Escola Superior de Teatro e Cinema, conseguir associar aquelas três “miúdas” ao que tinham acabado de ver. Foram-lhes atribuídos 20 valores.

Existem planos extraordinários e momentos a lembrar Almodóvar ou Ettore Scola. O telefonema ao presidente de câmara, o extraordinário baile no pinhal, todos os diálogos, os fados cantados no salão da “Bucha”, a vida no frigorífico, aqueles rostos, as casas, o céu. 

Pode ser visto em https://vimeo. com/179675597. As três entraram na licenciatura de Cinema. Preparam-se para concorrer a festivais internacionais.

Phiona Mutesi era uma menina com muita fome em 2006, em Katwe, um dos piores sítios para viver no Uganda. Há menos de um mês voou da Olimpíada de xadrez em Baku para Toronto, no Canadá, para assistir à estreia do filme “A Rainha de Katwe”, produzido pela Disney sobre a sua vida assombrosa. 

Descobriu o xadrez num centro de caridade e isso mudou a sua vida. Num ambiente de assassinatos, roubos e prostituição, Phiona perdeu o pai aos três anos e ficou sem casa porque a mãe não a podia pagar. Um dia, quando andava aos caixotes por comida, conheceu Robert Katende, um missionário que alimentava crianças em troca de aprenderem a jogar xadrez.

Rapidamente, o missionário descobriu o talento extraordinário de Phiona, que começou a ganhar torneios. Hoje, e apesar de ter nascido em áfrica, mulher e pobre, Phiona venceu.

Nabokov, escritor russo a quem também fascinava o xadrez, escreveu a novela “Desespero”, uma reflexão sobre a identidade num jogo de espelhos em que a ficção e a realidade se fundem.

É a história de um homem que descobre o seu duplo em Praga, um indigente, bêbado, indistinguível, como se fosse o seu irmão gémeo.

Depois de ler o livro, passei anos com a sensação de que o meu duplo podia aparecer de repente e eu ser preso por algo que nunca tinha feito, mas que testemunhas jurariam ser eu o responsável. 

Decidi assassiná-lo mal o avistasse, mas não o fiz por receio de me matar a mim mesmo. Sinto–o como a um fantasma, estou vigilante, sei que o dia chegará para um dos dois. 

E a propósito…

Consultor de comunicação
Escreve às quintas-feiras


A propósito do livro de José António Saraiva


Neste complexo emaranhado de valores, moral e ética, de interesses não confessáveis, medos renascidos e direitos civis ajustados, vivemos sufocados numa informação especializada em desesperança


Quando pensamos que já vimos tudo e já nada nos pode surpreender, eis que a vida nos sacode e demonstra que estamos enganados e que trocámos, uma vez mais, o acessório pelo fundamental. 

Amolecemos, vivemos entre a neblina que nos impede de ver com limpidez e só nos dá a imagem desfocada do outro, e o ruído em que confundimos o berro com a mensagem. 

Com frequência esquecemos que a nossa informação e conhecimento é uma ínfima parte do saber universal e que, muitas vezes, aquilo que hoje damos como definitivo e óbvio não o era há seis meses atrás, quando dávamos como absoluta e peremptória a visão particular que tínhamos de todas as coisas.

Neste complexo emaranhado de valores, moral e ética, de interesses não confessáveis, medos renascidos e direitos civis ajustados, vivemos sufocados numa informação especializada em desesperança que relativiza a nossa desgraça no drama dos outros e adverte para a nossa impotência frente à poderosa globalização do mal e do caos. Querem homens da cor do silêncio. 

Neste sábado assisti a um documentário sobre os últimos dias dos realojados do Bairro da Boavista em Lisboa, trabalho que constituiu a prova de aptidão artística do curso de Comunicação Audiovisual, Cinema e Vídeo da Escola Artística António Arroio.

Confesso que a curiosidade era maior que a expectativa, mas o título do filme, “Na Casa Atravessei as Estações”, retirado do verso de um poema de Ruy Belo, devia ter-me alertado.

Foi uma revelação. Conforme o filme nos apresenta as mulheres do Boavista, personagens geniais e genuínas de um grande documentário sobre a dignidade, nós vamos ficando com a sensação de estar ali e de as conhecer de toda uma vida.

O trabalho é feito com uma sensibilidade humana e uma destreza técnica que nos reconcilia com o quotidiano. Emociona e faz-nos sorrir, mas é a consideração com que as protagonistas são retratadas que marca a diferença e nos toca. 

As jovens realizadoras nunca interferem, são como seres alados que nos oferecem observar sem filtro aquelas mulheres, e elas, cúmplices, alinham no jogo. Entende-se uma confiança partilhada.

É preciso ver para entender, e então quando se sabe que foi realizado e produzido por três jovens alunas, todas de 17 anos, Inês Araújo, Leonor Pereira e Ana Marques, percebe-se o desconcerto que foi para o júri, constituído por professores da António Arroio e convidados da Escola Superior de Teatro e Cinema, conseguir associar aquelas três “miúdas” ao que tinham acabado de ver. Foram-lhes atribuídos 20 valores.

Existem planos extraordinários e momentos a lembrar Almodóvar ou Ettore Scola. O telefonema ao presidente de câmara, o extraordinário baile no pinhal, todos os diálogos, os fados cantados no salão da “Bucha”, a vida no frigorífico, aqueles rostos, as casas, o céu. 

Pode ser visto em https://vimeo. com/179675597. As três entraram na licenciatura de Cinema. Preparam-se para concorrer a festivais internacionais.

Phiona Mutesi era uma menina com muita fome em 2006, em Katwe, um dos piores sítios para viver no Uganda. Há menos de um mês voou da Olimpíada de xadrez em Baku para Toronto, no Canadá, para assistir à estreia do filme “A Rainha de Katwe”, produzido pela Disney sobre a sua vida assombrosa. 

Descobriu o xadrez num centro de caridade e isso mudou a sua vida. Num ambiente de assassinatos, roubos e prostituição, Phiona perdeu o pai aos três anos e ficou sem casa porque a mãe não a podia pagar. Um dia, quando andava aos caixotes por comida, conheceu Robert Katende, um missionário que alimentava crianças em troca de aprenderem a jogar xadrez.

Rapidamente, o missionário descobriu o talento extraordinário de Phiona, que começou a ganhar torneios. Hoje, e apesar de ter nascido em áfrica, mulher e pobre, Phiona venceu.

Nabokov, escritor russo a quem também fascinava o xadrez, escreveu a novela “Desespero”, uma reflexão sobre a identidade num jogo de espelhos em que a ficção e a realidade se fundem.

É a história de um homem que descobre o seu duplo em Praga, um indigente, bêbado, indistinguível, como se fosse o seu irmão gémeo.

Depois de ler o livro, passei anos com a sensação de que o meu duplo podia aparecer de repente e eu ser preso por algo que nunca tinha feito, mas que testemunhas jurariam ser eu o responsável. 

Decidi assassiná-lo mal o avistasse, mas não o fiz por receio de me matar a mim mesmo. Sinto–o como a um fantasma, estou vigilante, sei que o dia chegará para um dos dois. 

E a propósito…

Consultor de comunicação
Escreve às quintas-feiras