Endeusada, adorada, venerada e idolatrada pelos seus pares e por muita imprensa, Mariana Mortágua deu um trambolhão e espatifou-se aos pés do altar de onde costuma falar aos seus seguidores, assumindo uma superioridade moral e intelectual snobe, urbana e radical.
O pretexto, desta vez, era um “super” IMI que já Passos Coelho tinha aplicado alegremente no tempo da troika. Mas não foi propriamente essa medida que afetou Mariana, e o Bloco por tabela. O que a atingiu em pleno foi a inesperada reação de uma imprensa normalmente dócil e submissa que o Bloco Esquerda (BE) sempre usou a seu bel-prazer desde que Francisco Louçã, João Semedo e outros militantes de esquerda ligados à intelectualidade o criaram.
Foi nessa senda que Mariana e Catarina Martins foram seguindo e fizeram crescer o BE desde que dele tomaram conta, conduzindo uma política de ataque verbal e de denúncia pública de casos e pessoas, umas vezes com muita razão e outras sem nenhuma.
E tudo se passou sempre com a utilização sábia e uma cumplicidade óbvia de muitos jornalistas que simpatizaram ideológica e culturalmente com as teses fraturantes, os ataques contra certos interesses instalados que o BE denunciava ou retomava depois de denunciados na comunicação social, evitando assim que caíssem no esquecimento.
Só que uma coisa é o Bloco e Mariana na oposição e longe do poder, e outra totalmente diferente é a situação atual em que, objetivamente, a instituição e a pessoa são centros de influência e de decisão efetivos que influenciam e pressionam quem decide da vida de cada um, ou seja, os poderes executivo e legislativo.
Ora, essa circunstância mudou tudo e Mariana (tal como a atual liderança do Bloco) não o percebeu totalmente. Por isso cometeu o erro de vir, ufana e ligeira, proclamar pela fresquinha no parlamento que vinha aí um imposto sobre o património que ia tirar aos muito, muito ricos para dar umas migalhas aos mais pobres. Ao aderir também à conversa da treta dos políticos que ela dizia combater, Mariana demonstrou que, afinal, já era um deles, e caiu-lhe tudo em cima. Ao princípio foram os partidos da direita e uma parte do próprio PS (coisa que ainda se mantém), mas o efeito de bola de neve deu-se. Seguiram-se os comentadores, os analistas e os jornalistas, ou seja, os diversos componentes dos media, que denunciaram a artimanha política e, à passagem, um imposto que não serve para nada, podendo até ter efeitos perversos, dada a facilidade com que os tais 8 mil abrangidos o podem contornar. Pior ainda: habituados a serem ludibriados, os portugueses de classe média que têm algum bem imóvel pressentiram que, um dia, a medida de Mariana lhes pode tocar e ficaram de pé atrás.
A queda de Mariana teve efeitos nesta confederação partidária chamada Bloco, que se viu obrigada a fazer avançar Louçã para dar explicações e tentar travar a onda. Mas o mal estava feito e o BE tornou-se, simbolicamente, em apenas oito dias, um partido de governo, com os inconvenientes que isso tem e entre os quais está o crivo implacável da comunicação social e da opinião pública, que destroem hoje o que ontem idolatravam.
Não é nada que não tenha acontecido a outros políticos noutros tempos ou noutras circunstâncias mais violentas. Vejam–se os casos de Paulo Portas, Manuel Monteiro e, mais recentemente, Sócrates.
Há muitos anos, quando foi apeado do poder de primeiro-ministro Francisco Balsemão, um homem que conhece a comunicação social melhor do que ninguém, ele recordou o velho ditado de que quem com ferros mata, com ferros morre.
É uma verdade que ainda hoje se mantém. Quem vive da imprensa e pela imprensa sem ter verdadeiramente uma base sólida de apoio, mas apenas um suporte baseado em estados de alma de uma burguesia urbana e preconceituosa que se reclama de esquerda, sujeita-se a ser vitimado por movimentos pendulares como o que atingiu Mariana e o Bloco.
O que agora sucedeu ao BE dificilmente acontecerá à instituição que é o PCP, que conta com uma base de apoio efetiva e permanente, ainda que desgastada, e que tem uma experiência política incomparável, além de conhecer bem a mentalidade real dos portugueses. Para Jerónimo de Sousa, o tropeção de Mariana foi uma benesse. Mas para António Costa foi mais do que isso. Na realidade, tratou-se quase de uma bênção divina. Acabou-se a superioridade moral. Doravante, o Bloco é um partido de poder e, pior ainda, de governo. Além do PCP, quem mais pode beneficiar com esse novo estatuto do BE é, objetivamente, António Costa e o seu PS, pois, como é sabido, a generalidade dos peixes grandes alimentam-se dos mais pequenos. É assim na vida do mar e, muitas vezes, no terreno da política.
Jornalista