O médico não te pergunta o nome, olhando-te diretamente nos olhos. Ao invés disso, lê o teu nome na ficha e di–lo em voz alta (não se vá dar o caso de não saberes como te chamas), pronunciando-o incorretamente (nem pensas em corrigi-lo porque já não entras nesse filme). Seria um esforço desmesurado e desnecessário que ocuparia todo o tempo da consulta. Ele que chame como entender, desde que te faça entrar no consultório antes da hora do almoço (esperar que um médico volte do almoço é a mesma coisa que esperar nas Finanças: entras novo e sais morto).
Quando entras, o médico aponta com a mão (sem falar) para que te sentes. Respiras fundo. O teu mau feitio borbulha e grita internamente: “Onde é que vou buscar a guloseima da compensação? Já que fui uma menina tão bonita, que compreendeu o sinal ‘sentar’…” Acabas por te sentar mas, com isto, o teu humor já não é dos melhores. De qualquer forma, manténs o sorriso na cara porque ainda funcionas dessa forma.
Passas então a ouvir as perguntas da praxe: se fumas, se te drogas, sem nunca olhar para ti e em tom monocórdico, enquanto tu vais respondendo sim e não. Agarras-te à cadeira e respiras ainda mais fundo. “Por acaso estou com uma moca do caraças…”, é o que te apetece responder, mas não o fazes – apenas porque tens a certeza que o médico não iria reparar no que tinhas acabado de dizer e que ainda te responderia com um “hum… hum … muito bem, muito bem”.
Pausa nas perguntas. Agora só consegues ouvir o bater das teclas do computador. Está a escrever muito depressa, tão depressa que te lembras de ti, quando brincavas às secretárias e fingias que escrevias no computador. Assustas-te a imaginar que ele possa estar a fingir, só para mostrar trabalho. É uma teoria rebuscada mas, como diz a tua mãe, “já viste de tudo nesta vida” e, se não está a fingir, pelo menos já entrou três vezes no email e está a caminho do quarto like. Disso, tens a certeza.
De repente, uma novidade. O teu interrogador olha-te de relance e tu quase consegues ver-lhe o rosto. Falso alarme – fá-lo tão rapidamente, escondendo-se outra vez atrás do computador, como um gato assustado que se esconde debaixo do sofá, que nem tens a certeza se é um homem ou uma mulher que te faz a consulta. Ok, decides que é um homem.
Ainda estás na consulta, mas sentes que estás a responder àqueles inquéritos de satisfação que te fazem na rua, porque o médico continua a fazer-te perguntas. Não olhou para ti e desconfias que não te vá examinar. Sim, fizeste a depilação para nada. Agora quer saber o que comia o teu avô. Lá contas minuciosamente o historial médico da tua família e, no impulso de quem está a contar tudo, até deixas sair um ou outro segredo de família, como a gravidez indesejada da Ana. Pronto, inquérito respondido.
A consulta está quase, quase a acabar. Ainda não tens a certeza total de que é um médico e não uma médica, mas logo saberás, quando a personagem se levantar da cadeira para se despedir de ti. Diz–te o que acha que tens e volta a escrever no computador. Ao dar-te a receita, questiona se tens perguntas a fazer, e claro que tens. Mas ele está tão apressado, escreve cada vez mais depressa, e tu és tão péssima sob pressão que acenas que não porque, supostamente, entendeste tudo. Não entendeste.
A consulta acaba. O médico deseja-te as melhoras. Não, afinal não tirou os olhos do ecrã do computador nem se irá levantar para se despedir de ti. Educada como és, tentas despedir-te com um “boa tard”… contudo, não terminas a frase. Porque ele já não te está a ouvir: o telefone tocou, a cadeira rodou e está de costas para ti, enquanto atende a chamada. Parece que vai almoçar com o colega do costume.
Levantas-te. Caminhas para a porta de saída e, de repente, ouves o médico a chamar pelo teu nome! Respiras fundo, sorri e voltas a confiar na humanidade. Tens a certeza que te vai pedir que te sentes novamente para te consultar melhor, ou desculpar-se pelo despacho e falta de empatia. Baixas as expetativas, talvez vá só despedir-se convenientemente de ti, o que já é ótimo! “Toda a gente tem os seus dias maus”, pensas tu, já perdoando.
Encaras o médico, com um sorriso no rosto (confirmas que sim, acertaste, é mesmo um gajo), e ele decreta:
“Diga à senhora que está lá fora para não entrar já, que depois eu chamo por ela.”
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