É difícil – e até tonto – apontar um escritor, um pintor ou um músico preferido. Se me obrigassem, quanto a pintores – e hesitando ao pensar em Caravaggio ou Bacon – diria Goya, e teria em mente sobretudo as Pinturas Negras, as que fez na Quinta del Sordo quando já tinha idade para conhecer bem as cores e os matizes da vida. Diz-se que são herméticas, mas não mais do que outras, pois nenhuma é mais ou menos clara antes de cada um de nós pôr nela os olhos (vendo coisas diferentes, pois somos seres singulares). Eu vejo a violência, a irracionalidade, o medo, a insegurança, o monstruoso e o grotesco, com algum tempero de ironia e um travo de resignação que, todavia, não escondem a ternura. O que, aliás, as torna muito atuais, sendo apropriadas ao nosso tempo (tal como Os Caprichos ficam bem ao século xviii e Os Desastres ao xx). O que queria Goya com elas? Mostrar o mal (e o seu ridículo) para apelar à correção dos vícios que o produzem? Talvez, mas que sei eu? Que sabe cada qual da cabeça dos outros?
Sei que gosto delas, que se enchem a meus olhos de significados possíveis. E gosto muito daquela a que se dá o nome que tomei aqui para título, que passa despercebida e não é emblema de catálogos, nem tem o poder figurativo de “Saturno” ou o mistério sedutor de “El Perro”. Mas prende-me sempre a atenção e as emoções, com a sua abundância de medo. Um medo difuso, mas violento, alimentado pela figura do irmão do Santo Ofício à direita na tela, mas também pela figuração grotesca da velhice das personagens – secas, curvadas e encolhidas, até apalhaçadas, vergadas de medo e resignação, seja perante a brutalidade da Inquisição, seja perante a tirania do tempo, uma e outro prenunciando a morte. “Paseo” ficava, na Quinta, em frente a “Duelo a Garrotazos”, ambas em harmonia no que respeita à alusão a um mundo atrasado e de costumes brutais, mas também em contraste, pois no “Duelo” temos dois iguais, que se enfrentam de cara destapada e com igualdade de armas, enquanto em “Paseo” temos desequilíbrio, vigilância e incapacidade de resistência.
A cena está entre o trágico e o cómico, quase. Mas quantas vezes a farsa não é uma figuração suportável da tragédia?
Não sei se “Paseo del Santo Oficio” é o melhor nome, nem se era isso que Goya queria significar. Talvez fosse, pois ele já conhecera diretamente a Inquisição e, sob o fantasma absolutista de Fernando vii, representar as coisas assim era uma forma de esconjurar o mundo opressivo e cruel que não tinha o sufrágio do pintor. Mas Goya era já, então, um homem velho e doente que se confrontava com a passagem do tempo – que aproxima da morte, que engelha a carne, que desfigura, que altera o gesto e o olhar, que enfraquece a identidade sexual, que torna os corpos indiferentes, quando não repugnantes, ao olhar dos outros. Talvez seja isso o que mais ressalta da pintura, e talvez essa seja a maior causa do medo que a domina. O fim do desejo, a secura, a erosão da vida. “Passeio do Tempo” talvez lhe assentasse melhor.
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