Certas naturezas humanas, amolgadas, torturadas, narcotizadas e, por fim, domesticadas ao longo de centenas de anos, adaptaram-se a ser meros pesos que se deslocam de forma repetitiva daqui para ali, arfando, preferivelmente baixinho.
Elevam o efémero ao nível da disciplina e cultivam a discrição do menos que zero. Quando parecem estar vivos, são pálidos como condenados e, quando se finam, o máximo para o que são capazes de nos convidar é para um velório.
No desespero de sobreviver, e de serem parte e artigo de consumo, foram-se adaptando a tudo, qualidade que partilham com a barata. Permutaram a capacidade de pensar pelo efeito de se parecerem com uma coisa.
Trocaram a capacidade de indignação, a revolta contra a injustiça, o exemplo e a solidariedade pelo medo, o sectarismo, o preconceito e um ego alimentado por uma realidade virtual por eles arduamente montada.
Na neblina em que efabulam, defendem com afinco os “valores”, a “palavra de honra”, a “moral” e, a mais importante de todas, a “memória”.
Claro que, aqui chegados, já se percebeu que utilizam esses padrões distintivos da personalidade como mera retórica, unicamente para justificar o seu direito à subvenção e a ser eleito para o que a nação agradecida entender.
Destes predicados gostam muito de alardear o da memória, a própria, pois assim ganham forma e apelido; a histórica, que lhes dá assento; e a mais contemporânea, que lhes dá peitaça e permite ensaiar uns passitos de militante enfado.
Lembram-se de Aylan? O menino curdo que morreu afogado em águas turcas quando fugia da guerra com a sua família? Lembram a sua imagem inerte como um boneco, de bruços na praia, abandonado sobre a areia? Aylan tinha três anos.
Foi uma morte inútil, como são todas as mortes destinadas a mover consciências, foi um ícone que durou o instante de um intervalo, o prelúdio de mais 500 cadáveres de crianças afogadas no Egeu só neste ano.
E de Omran, lembram-se? O menino saído dos escombros como de uma cripta após um bombardeamento em Alepo.
É a guerra a morder-te. Omran tem cinco anos, dirige-nos um olhar de cinzas que se cola a nós e já não sai. Sentimos náusea. Omran não chora. Leva uma mão à ferida na sua cabeça. Reconhece o seu sangue na palma e limpa-a contra o assento. É um filme de terror. Omran parte para nenhum lugar.
E das mais de 10 mil crianças “desaparecidas” entre as malhas da máfia e o desinteresse europeu, recordam-se?
A Hungria convocou um referendo em que vai perguntar aos cidadãos algo tão direto como isto: “Quer que a União Europeia possa determinar uma quota obrigatória de cidadãos não húngaros na Hungria sem o consentimento do parlamento?”
Se triunfar o não, o governo de Orbán retira-se da política migratória comum. Recordamos as estradas de cidadãos em êxodo, expulsos e perseguidos?
Nesse mesmo dia vão repetir-se as eleições presidenciais na Áustria, em que pode vencer o candidato ultranacionalista. Recordam a memória de outros anos de chumbo?
O Papa Francisco e François Hollande declaram que estamos em guerra. Existe toda uma geração que nasceu com a metralhadora no berço e se faz explodir nas ruas cosmopolitas da Europa. É uma afirmação construída de memórias?
Porém, para que serve a memória, se tudo o que regista não serve para nada, e tudo a que aspira é ao exercício da nostalgia?
É uma memória supérflua, abatida num mundo complexo que os seus proprietários já não compreendem.
Nada se altera: ciclicamente temos o caos e os bárbaros à nossa porta. Uma e outra vez cometemos os mesmos erros, praticamos a mesma indiferença e agimos com a mesma altiva arrogância.
Esta memória padronizada é a de um sistema em agonia, é um instrumento inútil, para oportunistas e cobardes. Foi engolida e transformada em anedota e penduricalho de saraus. Essa é uma memória de cinzas, não a queremos.
Só tendo a coragem de agir podemos criar a memória necessária, a que resulta da transformação do nosso tempo.
A nossa memória é a do nosso legado, da nossa indignação, que nos aproxima e nos faz sentir humanos e membros de uma espécie.