Nos Estados Unidos, cerca de 400 alunos e professores surpreenderam um professor doente com cancro, cantando-lhe à janela do hospital. Este vídeo, como tantos outros em que vemos manifestações emocionantes de carinho, não arrepia apenas. Faz pensar.
Quando algo que foge ao nosso controlo acontece – como a doença de alguém de quem gostamos –, a nossa criatividade flui. Passamos a surpreender. Escrevemos versos, cantamos canções, reunimos amigos para uma festa-surpresa, num dia da semana e sem ser dia de aniversário; colamos fotografias na parede, organizamos homenagens, inventamos piadas, arranjamos tempo. Doamos tempo. Quando algo foge ao nosso controlo, quando a única opção é melhorar aquele dia, porque mais do que isso não é possível fazer, quando temos a real noção da nossa influência na vida do outro fazemos das tripas coração (literalmente, se for preciso, a sério, arrancamos as próprias tripas) e damos o nosso melhor. Amamos melhor, ajudamos melhor, vivemos melhor.
Damo-nos. Damo-nos porque sabemos que não faz sentido não o fazer.
Acabam as distrações, as desculpas, as tretas, os atrasos, o “eiaaa, desculpa lá, nunca mais me lembrei de te ligar…”. Já não passamos lá só mais tarde e já não ficamos só cinco minutinhos porque temos de ir às compras. Abandonamos os beijos rápidos, os abraços largos que nem tocam no corpo e o adeus quase de mão fechada; paramos com as visitas de médico, com as despedidas à pressa, com as chegadas ignoradas. Levantamos a cara do telemóvel e levantamos o outro no ar porque já não o víamos há uma semana, deixamos o pokémon fugir porque queremos apanhar o nosso amor em casa a tempo de o amar; saímos do emprego mais cedo ou até para sempre, usufruímos do bom tempo porque o bom tempo acaba. Fazemos serenatas à janela do hospital.
Além de estimular a nossa criatividade, acho que o cancro também nos ajuda a resolver os nossos problemas de memória. Podemos reconhecer a importância das bananas, das nozes e de todos os alimentos que ajudam a melhorá-la, mas não há nada melhor que o cancro, para resolver os problemas de memória – porque o cancro ajuda-nos a recordar. A mim ajuda. O cancro ajuda-me a lembrar que, quando estava doente, conviver com os meus amigos era uma das maiores relíquias do mundo, e basta-me isso para conversar durante horas, sem peso de consciência por me atrasar para qualquer coisa, com a minha amiga de eleição; o cancro lembra-me que o meu pequeno problema é tão insignificante que, mesmo visto à lupa, seria irreconhecível o seu tamanho; o cancro faz-me recordar, mesmo que às vezes gostasse de não me lembrar tanto dele.
Era bom que não precisássemos do cancro para nos lembrarmos do quão importantes são estes gestos de dedicação, de amor ao outro. Era tão bom que juntássemos 400 alunos para cantarmos ao nosso professor, só porque gostamos muito dele e lhe estamos gratos por nos ter ensinado o que, depois, fez diferença. Mas o que importa é que estes gestos se façam, se multipliquem como os pães. Que existam. O que importa é que saiamos de casa apenas para cantar na janela de alguém.
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