Veneza. Um pugilista faz-se para isto

Veneza. Um pugilista faz-se para isto


Para “São Jorge”, filme de Marco Martins que marca o regresso às colaborações entre o realizador e o ator no cinema depois de “Alice”, Nuno Lopes fez-se um deles. E fez tão bem que venceu o que havia para vencer em Veneza: o prémio de melhor ator da secção Horizontes. O Leão de Ouro foi…


Nuno Lopes queria ser pugilista e fez-se um. Para um filme com Marco Martins, realizador e amigo de longa data, que “Alice” já foi há mais de dez anos, não dava para ser diferente. Filme que lhe deu o primeiro Globo de Ouro em Portugal, rampa de lançamento para uma percurso no cinema que estava ainda a começar e que se prova cada vez mais certo. Foi no processo de escolha de atores para esse filme que os dois se conheceram. Num casting, esse processo preferido do ator que ontem teve de regressar a Veneza – que já tinha deixado, porque um festival de cinema são muitos dias e ser ator em Portugal é sobretudo ter de trabalhar, e ter de trabalhar muito – para receber o prémio especial de melhor ator da secção Orizzonti (Horizontes), dedicada a filmes que representam novas tendências estéticas e expressivas do cinema mundial, com especial enfoque na produção independente.

O Leão de Ouro foi para “The Woman Who Left”, do filipino Lav Diaz, e o melhor ator da competição internacional foi Oscar Martinez (“The Distinguished Citizen”), e o de melhor atriz para Emma Stone (“La La Land”).

O regresso que é prova disso e de que Nuno Lopes não previa mesmo isto, que não foi coisa dita da boca para fora no discurso de agradecimento pelo prémio, que dedicou aos moradores dos bairros da Jamaica e da Bela Vista, dos subúrbios de Lisboa, onde no ano passado foi rodada boa parte de “São Jorge”. São eles, sublinhou,“os verdadeiros heróis deste filme”, para quem é bom que os governantes comecem a olhar antes de tudo, antes de qualquer discussão sobre a Europa, porque as pessoas não são números.

“São Jorge” era o único filme português em competição nesta edição do Festival Internacional de Cinema de Veneza – além deste, havia apenas o franco-português “À Jamais”, de Benoît Jacquot, produzido por Paulo Branco, mas fora de competição – e “foi muito bem recebido”, disse ao i o ator ao telefone de Veneza, no final da cerimónia. Mas ser bem recebido é uma coisa, o prémio com que o júri da secção, presidido pelo realizador francês Robert Guédiguian, decidiu distinguir o trabalho de Nuno Lopes – que aqui é Jorge, um pugilista obrigado a aceitar um trabalho noturno numa empresa de cobranças difíceis para fazer face às suas próprias dívidas quando está a perder o seu emprego – é outra.

“Estou um bocadinho sem palavras”, foi por aí que começou a tal conversa na noite de sábado. “Achei que havia a hipótese de o filme ser premiado, mas não pelo meu trabalho”, sublinhou, para depois acrescentar: “Há dois dias que sinto os pés fora do chão.” Mas isso de que falávamos de se ser ator em Portugal tem o que Nuno Lopes vê como lado bom de rapidamente devolver um ator à terra.

O dia seguinte. “O bom de se ser ator em Portugal é que há sempre uma tendência para se achar que é muito importante um prémio como este. E é, porque dá visibilidade ao filme, mas isto de se estar num festival é ótimo durante esses dias, mas no dia a seguir… No dia a seguir a Berlim, onde estive [em fevereiro] a apresentar o filme do Hugo Vieira da Silva [“Posto Avançado do Progresso”], estava a limpar o chão para a peça de teatro que ia fazer. Essa parte de ter os pés bem assentes na terra é importante.” E a verdade é que, no dia a seguir a Veneza, Nuno Lopes não estava a lavar o chão de uma sala de teatro, mas estava a trabalhar em Lisboa, como DJ, a encerrar o Entrada Livre, os três dias de programação gratuita com que o Teatro Nacional D. Maria ii assinalou a abertura da nova temporada.

Na nota enviada à imprensa ao início da noite de sábado, mal foi anunciado o prémio, a Filmes do Tejo II, que coproduziu esta que é a segunda colaboração entre Nuno Lopes e Marco Martins, explica que para a preparação do papel, o ator, conhecido pela forma quase obsessiva como mergulha nas suas personagens, fez trabalho de pesquisa em bairros sociais, no meio do boxe e no circuito das cobranças difíceis. E dá uma ideia do treino intensivo a transformação física a que teve de se submeter para chegar à personagem que lhe deu aquela que, até à data, é a maior distinção da sua carreira. Em Portugal contam-se três Globos de Ouro (por “Alice”, em 2006, “Goodnight Irene”, em 2009, e “Linhas de Wellington”, em 2013), mais um EFP Shooting Star, em Berlim, que todos os anos distingue um grupo de dez jovens atores europeus, entre os quais estava Nuno Lopes, em 2006, e um CinEuphoria, em conjunto com o resto do elenco de “Sangue do Meu Sangue”, de João Canijo, em 2012. Para “São Jorge”, diz a produtora, “o ator ganhou 20 quilos e submeteu-se a um programa de treino físico durante seis meses, chegando na fase de maior intensidade a treinar seis horas diárias de boxe e crossfit”.

O princípio do que viria a ser essa personagem central em “São Jorge”, que chega às salas portuguesas no final de novembro, terá sido por volta de 2012, altura em que Nuno Lopes e Marco Martins estiveram nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, a encenar uma peça em que os próprios trabalhadores eram atores sem texto escrito nem memorizado. Princípio que ajudou ao tema e à forma deste filme, em que os empregados da fábrica onde trabalha Jorge são justamente os trabalhadores dos estaleiros de Viana. O resto fez o contexto.

“São Jorge” é um filme político e um filme político feito nestes anos não poderia ser outra coisa. “Queríamos falar sobre Portugal e era impossível falar sobre Portugal sem falar da crise. A própria ideia do boxeur já tinha a ver com isto da crise”, recorda Nuno Lopes, que já em março, numa entrevista que nos deu a propósito da estreia do último filme de Hugo Vieira da Silva, ansiava por poder ver a versão final de “São Jorge”: “É um trabalho do qual me orgulho muito”, dizia. E, diz Veneza, orgulha-se bem.