O tema da regulação e da autorregulação está presente em várias áreas, mas a total compreensão do seu significado e do que as une e distingue parece não ser ainda uma realidade. De forma simples, a regulação é obrigatória e sancionada. Ilegaliza e pune comportamentos que a sociedade entende como impróprios. Já a autorregulação é voluntária e pugna pela melhoria da relação entre as partes interessadas. É mais ampla e tenta impor limites práticos, mas também éticos ao comportamento das partes.
Num mundo ideal a autorregulação não seria necessária e as chamadas boas práticas não se negociariam, não se minimizariam e não se apregoariam. As boas práticas simplesmente praticar-se-iam! Mas este não é um mundo ideal…
Em boa verdade, muitos dos esforços de autorregulação desenvolvem-se como modelos de contenção e de compromisso, pretendendo demonstrar às autoridades que as partes são capazes de, voluntariamente, alterar comportamentos e assim evitar que os Estados, sintam necessidade de atuar pela via legislativa e, portanto, punitiva.
Portugal foi, na segunda metade da década de noventa, pioneiro na construção de um instrumento de autorregulação e no estabelecimento de um conjunto de compromissos entre fornecedores e distribuidores. Esse Código de Boas Práticas foi, à época, um farol de esperança num melhor relacionamento entre as partes, mas o tempo, a inércia e a incapacidade de produzir resultados, acabaram por gerar a descrença e a necessidade de enveredar por outro caminho.
E foi essa essa incapacidade que exigiu uma nova regulação, consolidada pela via legislativa, na tentativa de reconstrução do equilíbrio naquele relacionamento.
A nível europeu, a autorregulação foi desenvolvida e, em 2011, um conjunto de entidades representando produção, transformação e distribuição assinaram um documento de “Princípios de Boas Práticas” nas relações verticais na cadeia de abastecimento alimentar, contendo uma tabela com diversos exemplos de práticas leais e abusivas. Dois anos mais tarde, porém, apenas transformação e distribuição subscreveram o respetivo Quadro de Implementação, constituindo o que hoje se designa como ‘Supply Chain Initiative’.
Em Portugal, com a publicação do decreto-lei das PIRC ficou aberto o espaço para a negociação de um novo Código de Boas Práticas Comerciais contendo as necessárias especificidades nacionais para melhor adequação ao seu funcionamento.
Pretendia-se que este novo Código, apesar da sua natureza voluntária, fosse adequado e, essencialmente, eficaz mas, não obstante o esforço sério de algumas entidades na construção de diferentes propostas e na tentativa de obter consensos, não foram ainda obtidos os resultados desejados.
No seu último relatório sobre Práticas Comerciais Desleais, o Parlamento Europeu subiu as críticas e insistiu nas lacunas à luta contra as práticas abusivas: falta de sanções por incumprimento; impossibilidade de apresentar queixas anónimas; limitações na transparência; o ‘fator medo’ face a represálias comerciais; a impossibilidade de realização de investigações por iniciativa própria de um organismo independente. E acrescentou que as Práticas Comerciais Desleais ocorrem em todo o mercado do grande consumo e não apenas no agroalimentar. Recordava, ainda, que a ausência de queixas está longe de significar a ausência de problemas.
As observações do Parlamento Europeu à Supply Chain Initiative estão a obrigar esta a repensar a sua forma de atuação, sob pena da sua ineficácia ser um argumento válido para que as instâncias europeias avancem definitivamente para a publicação de legislação comunitária harmonizada em matéria de práticas comerciais desleais.
Salvaguardadas as devidas diferenças, uma autorregulação ineficaz e inadequada parece corresponder àquelas dietas em que se pode pecar sem sentimento de culpa. Corresponde, sobretudo, a uma tentativa falhada de resolver os problemas, sem efectivamente os resolver.
Avançar para uma autorregulação sem eficácia nem consequência torna os signatários cúmplices de um processo que mina a obtenção de soluções E, nunca esqueçamos, se um lado estiver um operador prevaricador, do outro haverá sempre um ou mais operadores fortemente prejudicados.