Nem a canícula nem a descompressão da vida política portuguesa disfarçam a ardileza do esforço de alguns protagonistas políticos em tentarem escapar entre os pingos da chuva. Sim, apesar do calor, sufocante em alguns momentos, mas sempre desafiante para as existências, continua a chover incerteza, falta de coragem para assumir as responsabilidades e uma reincidente euforia em jeito de fuga para a frente.
O facilitismo do discurso político com que se anunciou a “viragem de página da austeridade” e abertura, quase por decreto, de um novo ciclo de crescimento económico e de prosperidade não tem correspondência com a realidade dos indicadores, em que apenas a diminuição do desemprego, impulsionada pelo turismo, se constitui em boa notícia. Radicando a boa notícia numa conjugação de dinamismo do setor turístico português com a conjuntura de medo de atentados que afetou determinados destinos turísticos com benefício para Portugal, é fácil perceber que não houve tradução significativa das opções políticas no consumo, na confiança e no investimento. Aliás, do primeiro para o segundo trimestre, o investimento contraiu 3%, um resultado similar ao registado no segundo trimestre de 2013; a dívida pública portuguesa, na ótica de Maastricht, aumentou 836 milhões de euros de junho para julho, situando-se nos 240,9 mil milhões de euros e as dívidas do Estado há mais de noventa dias aumentaram 15,5% entre janeiro e julho de 2016.
Com grande probabilidade, um governo com outra configuração, ainda que com diferente narrativa, teria resultados similares.
A verdade é que o discurso político pode mobilizar ou afagar egos, mas já não tem os instrumentos de intervenção na vida concreta das pessoas e da sociedade que tinha outrora, as geografias das nossas exportações apresentam vicissitudes várias e a conjugação das consequências da estratégia de empobrecimento com os problemas estruturais do país requerem um maior tempo de recuperação. Acresce que sem uma visão estratégica para o país e sem algumas mudanças de paradigma, sintonizadas com a vida real, a governação oscilará entre as guinadas geradas pelas exigências dos parceiros da convergência governamental, as respostas às ocorrências quotidianas e a construção de uma narrativa para Bruxelas. Será uma permanente fuga entre os pingos da chuva da responsabilidade. Os portugueses merecem outro nível de explicação, com mais verdade e menos efabulação. São demasiados anos de efabulação, ora em euforia, ora em depressão, sem que exista verdade e explicação no que está a ser feito e no que está a acontecer.
É claro que, entre os pingos da chuva, os casos que acontecem na governação não têm implicado responsabilidade e consequência e têm contado com o tradicional aparente alheamento ou relativização do primeiro ministro que contará, por enquanto, com a complacência de Marcelo, enquanto este enche o balão da popularidade.
É claro que, entre os pingos da chuva, o atual primeiro ministro de Portugal é o primeiro responsável político estrangeiro a dar cobertura ao golpe constitucional da mudança de Presidente no Brasil, num encontro com Michel Temer, como se os golpes tivessem geometria variável. É certo que em matéria de golpes, a credibilidade é muita e também dentro das regras do sistema. A habilidade política que tantos hipnotiza. Não se percebe o espanto de BE e PCP pela realização do encontro Costa/Temer.
É claro que, entre os pingos da chuva, pode-se condescender com a continuidades na Santa da Casa da Misericórdia de Lisboa, por conveniência central ou compromissos pessoais, enquanto se consolida uma forte candidatura alternativa ao atual poder na Câmara Municipal de Lisboa, com trabalho no território do município da capital. Até parece que a autarquia não é a peça central da estrutura de poder do PS, tal é a displicência política.
É por tudo isto que valorizamos quando não se fica entre os pingos da chuva. Quando se diz o que se pensa e se assina, ao invés da corrosiva surdina ou do anonimato, tão do agrado de alguns protagonistas políticos. Foi o que fez, nesta fase, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, com o projeto da requalificação da segunda circular entre o nó da Buraca e o aeroporto. Não terá sido o responsável por este imbróglio do planeamento, reabilitação urbana e espaço público, mas deu a cara pela erradicação das suspeitas. E devia ser sempre assim quando se trata da gestão pública: os responsáveis assumirem as responsabilidades e não deixar gangrenar suspeitas, faltas de transparência e outras realidades que minam a confiança nos políticos e na política.
Algum dia a canícula da euforia e do facilitismo dará lugar ao realismo, por efeito da chuva densa ou de um qualquer rebate da consciência. Que não seja tarde.
Notas Finais
Chuva molha parvos. O disparate das notícias sobre a situação financeira do Partido Socialista, as declarações, os comunicados a admitirem o inadmissível e o doentio acabrunhamento de quem devia gerir e solucionar em vez de tentar desculpar-se ou ver fantasmas onde não existem.
Precipitação. Adoro o cheiro a terra molhada, dizem que dá azar. Vai soar a precipitação as declarações do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português sobre o OE 2017 quando tiverem que votar o dito, a contragosto, sem ser o seu e com outras narrativas de desculpabilização. Quem anda à chuva molha-se.
Saraivada. Estão agrestes os arrufos entre PSD e CDS. Estão iminentes os ajustes de contas com o Palácio de Belém do tempo do outro senhor. Tantas perturbações assim intituladas poderiam desembocar na comunicação de um clube, mas já não há caracteres.