Carlos Cabral Nunes. “Vivemos numa espécie de bipolaridade”

Carlos Cabral Nunes. “Vivemos numa espécie de bipolaridade”


Com centena e meia de obras de um acervo de três milhares, o galerista da Perve quer retomar a tradição de mostrar todos os anos os inúmeros reflexos do seu “navio de espelhos”


Ao fim de um interlúdio de 10 anos a Galeria Perve volta a expor as obras do seu Acervo. Através de um percurso algo labiríntico somos confrontados com obras de arte moderna e contemporânea, reunidas num conjunto inesperado, pela distância temporal e geográfica entre alguns dos artistas, mas surpreendentemente coerente. No espaço da Perve Galeria, na Rua das Escolas Gerais, em Alfama, convivem em espantosa harmonia, Malangatana e Picasso, Artur Bual e Dalí,  Man Ray e Cesariny, entre outros. “Acervo” estará patente até 8 de outubro.

Entrevistámos o galerista, Carlos Cabral Nunes, para quem a arte é um ativo essencial do país, capaz de definir a cultura de um povo e de a comunicar para a eternidade. Fugindo da ideia de investimento a fundo perdido, o galerista à frente da Perve utiliza os recursos que consegue do mercado da arte para manter e dar a conhecer um importante espólio artístico na esperança de que nos possamos identificar individualmente e como civilização.

Para um país como Portugal, totalmente dependente do turismo e da maneira como comunica a sua identidade, a arte é um meio insubstituível e precioso para criar uma cultura e uma imagem reconhecíveis globalmente. Cabral Nunes tem uma visão prática e objetiva do papel da arte na definição de Portugal e do “produto” português. Foi essa visão que o levou ao recente sucesso no caso das obras de Joan Miró, que pertenciam ao antigo BPN. Estando por detrás da petição pública para manter as obras em Portugal, o diretor da Galeria Perve conseguiu convencer o Estado Português do valor superior de uma coleção desta dimensão, permitindo desde já a exposição das obras no Museu de Serralves e a discussão pública do interesse que podemos, ou não, ter em conservar a coleção como um ativo, no nosso país.

Combatendo os programas restritivos, que procuram acentuar uma arte experimental em detrimento de outras abordagens, e que parecem movidos por uma miragem que confunde Lisboa com Nova Iorque, a Perve e a Casa da Liberdade Mário Cesariny pretendem acima de tudo manter um discurso aberto que permita à população interessar-se e rever-se livremente nos artistas e na arte que considerem mais próximos de si.

Quando concebeu esta mostra, dentro desta diversidade, qual foi a ideia que quis privilegiar?
Esta exposição surge em contraciclo. Há uma tendência, que até já foi abandonada noutros países, mas que em Portugal, e por funcionarmos com uma certa décalage temporal, se mantém para impor um discurso unívoco. É um discurso que dá primazia à questão da experimentação, de um certo niilismo, se quiser, até do ponto de vista visual ou narrativo. Se acho que isso pode ser interessante, prefiro a diversidade. E aqui há obras que apontam em vários sentidos. Com esta exposição, e a partir do nosso acervo, gostava que as pessoas fossem confrontadas com várias linguagens e que estas lhes permitissem encontrar-se, isto do ponto de vista do seu gosto e aspiração. No fundo, isto é uma espécie de índice, conjugando uma série de possibilidades. Há aqui obras que nos ligam à geração dos nossos avós e há outras que são de ontem. O Mário Macilau, de que temos alguns trabalhos, tem 30 anos e é já um autor respeitadíssimo. Quando se expõe na Saatchi Galery, em Londres, ou no Pavilhão do Vaticano, na Bienal de Veneza, isso é de incontestável importância. A CNN dedicou-lhe um programa, como a Al Jazeera, a um fotógrafo com 30 anos, de Moçambique. Temos artistas assim, que por cá ainda são pouco conhecidos, e artistas como o Picasso, o Man Ray…
Esta ampla perspetiva, quer temporal, quer geográfica, reflete apostas suas. Mas há um fio condutor?
 Eu não me ligo às obras pela assinatura. O que me liga a elas é o que me podem dizer. Recordo sempre o que me dizia o Nadir Afonso sobre a acuidade do olhar. Uma obra de arte é aquela que resiste ao nosso olhar e que se agiganta de cada vez que a olhamos. Eu tenho obras em casa, sempre fui tendo, desde miúdo – primeiro de amigos, depois trocas, tinha-as em micas, coisas que pendurava… isso vem da minha adolescência –, e nunca deitei nada do que colecionei fora, mas hoje convivo com outras, e de facto há obras que estão connosco, na sala ou no quarto, e que se a maior parte dos dias passamos por elas e já nem reparamos porque se diluíram de algum modo no cenário de todos os dias, mas o impressionante é quando, um dia, se volta a fixar o olhar na obra, e esta volta a suscitar questões e interrogações, convocando-nos novamente. E é nesse momento que a obra resiste ou não resiste. Ou está perante uma obra de arte, para si, ou não. Se a obra já não tem possibilidade discursiva então deixou de existir para si como obra de arte, passou a ser um objeto que simplesmente está ali. A obra de arte é aquela sobre a qual podem passar meses, anos e até vidas, e que mesmo assim, de súbito, uma pessoa estabelece com ela um diálogo que pode durar horas e prolongar-se pelo resto da sua vida. De um momento para o outro dá por si sentado, fixado num objeto que esteve sempre ali, e que de novo o convoca para um diálogo. Novas coisas lhe aparecem, coisas que não tinha visto antes; ela desenvolve-se consigo. O objeto não se alterou, mas a obra de arte transformou-se dentro de si. É ao observar noutra pessoa um efeito semelhante na relação com a obra que se começa a estabelecer um processo cultural. A cultura é isso: quando o diálogo com a obra de arte abrange mais pessoas. Uma conversa entre duas pessoas ou mais em torno daquela mesma coisa que é estática, que sempre foi o que é, e que através desse processo se vai engrandecer até ao ponto em que se aceita unanimemente que se está perante uma obra de arte.
E esta exposição é uma tentativa de construir esse diálogo?
Eu gostava muito que todas as obras que aqui estão pudessem alcançar esse amplo reconhecimento. É sempre nessa perspetiva que eu trabalho. Aquilo que me interessa verdadeiramente na vida é a arte. Há coisas piores, haverá também coisas melhores. Também estive envolvido na música, estive envolvido com a indústria, tive editoras discográficas, e sempre foi isso o que me motivou. Nas várias disciplinas artísticas busquei aquilo que alcança essa esfera que nas religiões chamaríamos a esfera do divino, ou a transcendência, ou seja, o que nos ultrapassa.
Alguma experiência o marcou decisivamente?
Das coisas mais marcantes que me aconteceram, e não teve propriamente a ver com a minha área nem nunca me tinha interessado, foi o fenómeno das gravuras rupestres. Esse aspeto mais ancestral da arte nunca me seduziu particularmente. Há quem tenha no topo da lista o desejo de visitar as grandes pirâmides, eu se fosse ao Egito não iria ver as pirâmides… Mas nunca esquecerei aquela célebre questão das gravuras de Foz Côa. Isso que foi uma das grandes vitórias da cidadania, tendo-se conseguido parar as obras de uma barragem, que já estavam em curso, para salvar aquelas gravuras rupestres. É uma coisa extraordinária. Modéstia à parte, esta questão envolvendo as obras do Miró é uma outra grande vitória da cidadania. Não fui eu que o fiz, embora me orgulhe de ter lançado a petição. Dez mil pessoas a assinarem um manifesto para impedir a venda em leilão, que já estava combinada com a Christie’s, é uma vitória extraordinária.
E em que ponto é que as coisas estão? O que acha da exposição em Serralves?
Há duas dimensões. As obras serem expostas é desde logo respeitar um mínimo de dignidade. Uma oportunidade que deveria ser dada às pessoas de todo o país de conhecerem estas obras. Fomos todos chamados a pagar com sangue, suor e lágrimas um buracão de um banco que tinha umas obras de grande valor artístico, e o mínimo que se pode fazer é mostrá-las às pessoas antes de se dizer que vão ser vendidas. Isso para mim era uma coisa essencial e que os outros fulanos [governo de coligação PSD-CDS] não queriam sequer permitir que acontecesse. Queriam vender aquilo quase pela porta do cavalo para não haver celeuma. Mas tem de haver um mínimo de dignidade. Este governo vir mostrar as obras é esse sinal de respeito para com as pessoas. Uma segunda dimensão prende-se com esta ideia de que a coleção poderá ficar no Porto. Bati-me para que ficássemos com a coleção, e essa é já uma vitória extraordinária, mas procurei nunca assumir uma posição dogmática. O que me parecia mais importante era que houvesse uma discussão séria em torno do assunto. 
Houve uma proximidade e até um relacionamento pessoal com alguns dos artistas aqui expostos. Na sua relação pessoal com alguns deles, o que sente que mudou ou não mudou no nosso país ao nível do papel das artes?  
A minha grande descoberta pessoal no mundo artístico, nos bastidores da coisa, foi com o Artur Bual, que eu conheci com vinte e poucos anos, em 1993.  Até essa década, o meio artístico era um outro mundo. Não havia a internet, os telemóveis só tinham começado a aparecer. O mundo artístico que se vivia em Portugal talvez tivesse afinidades com aquele que se vivia em Paris nos anos 1940-50. Um certa efervescência, com pessoas a quererem comprar e colecionar obras de arte, pessoas que iam aos ateliers dos artistas, e os ateliers de alguns estavam sempre com gente. A primeira vez que estive com o Bual parecia outro planeta. Esse mundo acabou. A partir do momento em que se intensificam as comunicações, com as novas tecnologias, a centralidade da internet, esse mundo perdeu-se. Por outro lado não nos abriram – e esse é que é o paradoxo – à realidade para lá das nossas fronteiras. Vivemos numa espécie de bipolaridade. Se certo meio artístico se eclipsou, o mundo a que nos abrimos afinal não tem mundo. Continuamos a funcionar como se Portugal estivesse cingido às suas fronteiras. Pior que isso, existe um incompreensível grau de regionalismo, e continua a haver autores que são extremamente conhecidos no Porto, como é o caso do Agostinho Santos, e aqui a maior parte das pessoas não faz ideia quem seja. Há outros autores que aqui são bastante conhecidos, como o Alfredo Luz, o João Ribeiro… No Porto ninguém os conhece. O país, que é tão pequenino, continua a ter isto. Isto é paradoxal para um mundo que se abriu mas que, por outro lado, continua fechado como sempre.
Quando nos guiou pela exposição disse-nos que tem havido em anos recentes uma adoção de uma visão bastante unidimensional da arte, muito virada para o lado experimental…
Isso está a ser orquestrado. O meio artístico é muito pequeno. Com raras exceções, acabaram os críticos de arte. Persistem algumas publicações, muitas delas apenas digitais, e há blogues e outras coisas assim, cujo conteúdo se dirige a um grupo muito reduzido de pessoas que seguem aquilo e para quem aquilo representa uma visão total. Em determinados níveis, com poder de influência mas também de aquisição – uma Fundação EDP, Serralves, a Culturgest quando ainda tinha dinheiro –, há algumas estruturas que ainda mantêm um poder de ação. Porquê?, porque se eu comprar X obras de um autor obviamente estou a dar-lhe importância, um peso institucional. Do ponto de vista estratégico – o da Câmara Municipal de Lisboa, da Fundação EDP e de algumas galerias e autores que têm interesse específico nisso –, houve uma convergência para que em Lisboa e no país se transmitisse a ideia de que o que tem valor e vale a pena é isto. E isto é um conjunto de práticas e de autores que, se já eram importantes num determinado circuito, não eram relevantes para a generalidade do meio artístico. Quer que lhe diga nomes? [Jorge] Molder – o próprio Molder, que foi diretor do CAAM –, o [Julião] Sarmento, o [Pedro] Cabrita Reis… Eu posso continuar. E depois vai ver o programa da Cristina Guerra e estão lá todos. Não digo isto movido por inveja, nem por antagonismo. Digo isto apenas porque considero que não podemos por decreto tentar que Lisboa seja Nova Iorque. Eu não posso decidir que vou fazer uma Universidade à imagem de Harvard em Vinhais. Não dá. Vinhais não tem a população, não tem a massa crítica para acolher Harvard. Lisboa não tem massa crítica para ser Nova Iorque. Não é por eu conseguir vender uma ideia da coisa que transformo Lisboa ou Portugal noutro sítio. Isto só se faz através de um processo. E para esse processo eventualmente nem são aqueles os nomes que contam. Há outros. Há um nome que é muito mais importante na arte portuguesa que uma catrefa de autores destes mais promovidos, e um autor que tem sido pouco reconhecido: o Fernando Aguiar. Se tivermos em conta o experimentalismo, a poesia visual… E como ele há outros: o António Aragão, a própria Ana Hatherly… O que acontece é que se passou por cima do que já foi feito, e é como se se quisesse agora construir uma casa começando pelo telhado. Para mim é uma evidência que isto não vai funcionar. É uma questão cíclica. Vai-se conseguir conquistar um certo elan mas, daqui por um tempo, tudo ruiu. E o que vai prosseguir é o que já existia antes, mas de uma nova maneira. Entretanto, o que nós vamos perdendo é credibilidade, sistematicamente. Porque como não conseguimos afirmar-nos por aquilo que somos, com as nossas idiossincrasias, com a nossa pequenez, com tudo o que é nosso, mas tentando afirmar-nos por aquilo que achamos que os outros são e pretendem de nós vamos acabar sempre num buraco mais fundo do que aquele onde estávamos.
Há algum exemplo óbvio desse fracasso cultural em projetar a nossa arte?
O Amadeo. A exposição do Amadeo em Paris é uma exposição circunstancial. Mereceu rios de tinta na imprensa portuguesa, construindo-se uma espécie de imaginário segundo o qual o Amadeo conquistou Paris. Nem os arrabaldes de Paris conquistou, quanto mais Paris. E porquê? Porque foi uma coisa ocasional. A última exposição que se fez dele em Portugal foi há dez anos, na Gulbenkian. Quase um século à espera para que existisse uma grande exposição do Amadeo, e que não é sequer aquela que foi a Paris, é menor. Antes de ir a Paris aquela exposição devia ter sido feita cá. E não ao fim de 10 anos. E devia ir desde logo ao Brasil, aos mercados que falam a nossa língua e que tiveram afinidades. Se formos ver o modernismo brasileiro há ali pontes com o nosso próprio modernismo. É importante, portanto, captar aquilo que nos é próximo para depois então se chegar a Paris com uma estratégia. Mas quando se fazem as coisas segundo uma lógica casuística o que é pode acontecer? Vai acontecer que, depois de termos ficado todos deslumbrados com a ideia de que o Amadeo conquistou Paris e a França e não sei que mundos mais, é claro que, daqui por um tempo, quando se deixar de falar de todo, e se perceber que não há obras em leilões e que não há cotação para o Amadeo, como não há, vamos ficar todos muito tristes, uma vez mais desiludidos. E vão ser precisos mais 10 anos para se voltar a fazer alguma coisa com o Amadeo. Qualquer dia o Amadeo passa só por coitado, uma espécie de curiosidade qualquer. Já é isso um bocado. Com isso gastou-se imenso dinheiro e o buraco é cada vez maior. O buraco onde metemos o Amadeo e nos metemos com ele.
Que alternativas vê?
Aquilo que me interessa é procurar que as pessoas, o cidadão comum, consiga tocar, chegar progressivamente à arte. Esta exposição segue essa visão. Tento abrir espaço para que as pessoas se encontrem elas próprias. Como estava a dizer-lhe há pouco, quando mencionei as gravuras rupestres, considero que foi uma grande vitória da cidadania. É um património único que felizmente foi salvo, e foi pelas pessoas. Claro que houve figuras com algum protagonismo que deram a cara, mas foram os anónimos que compreenderam a importância daquilo, que entenderam que se tratava de uma riqueza maior que uma barragem. E é. Essas pessoas é que interessam, porque essas é que fazem um povo. Por isso julgo que o importante é trabalhar com o que existe. Por outro lado, é preciso assumir a quota parte de responsabilidade das instituições e pessoas envolvidas no mau trabalho cultural que se tem feito. Quando contacto com estudantes universitários que não sabem o que são as gravuras rupestres nem ouviram falar do Miró, nem do Cesariny… A culpa não é deles. É sempre mais fácil dizer que são uma cambada de ignorantes. O problema para mim está sempre do lado de quem tem a seu cargo projetar estas coisas. Há uma falha na comunicação, naquilo que é a capacidade de atração. Ao guiar-vos na exposição falei do Comendador Berardo e da Quinta da Bacalhoa. Ele conseguiu pegar numa herdade de vinhos e tornar aquilo apetecível para as pessoas irem, levarem a família, e nesse processo são confrontadas com umas coisas melhores outras piores, mas com arte. Portanto, estão num espaço cultural. Esse para mim é o grande desafio que se coloca a Portugal.
Existe então uma dificuldade em lidar com a realidade?
Veja o que era Portugal há umas décadas. Eu lembro-me de ser miúdo, nos anos 1970, e de não me acontecer uma vez mas várias vezes num dia ser parado por velhinhos que me pediam: “Ó menino, leia-me aqui esta placa”. A iliteracia!, as pessoas não sabiam ler. É daí que nós vimos. E foi um processo extraordinário o que se cumpriu em 40 anos. Mas vimos de um país atrasadíssimo. Lembro-me de ver cabras a pastar em Benfica. É um país que não tem grandes recursos naturais, cuja dimensão é reduzida, o papel que tivemos outrora no mundo também é só uma memória, e portanto este país, que está metido numa União Europeia com tubarões, tem de entender qual pode ser o seu papel. Aquilo que eu entendo que pode ser o nosso papel é como um país de arte e cultura. É nas indústrias culturais e criativas que eu vejo um futuro. Quando falo disso, incluo também o desporto – o futebol, como indústria. É aí que conseguimos de alguma maneira superar-nos. Quando conseguimos projetar internacionalmente um artista como o Vhils ou um Cristiano Ronaldo – nesse tipo de coisas em que o génio, o brilhantismo de um indivíduo consegue dar a volta à situação, é por aí que podemos reforçar o nosso papel. E depois, localmente, temos um clima bom, paisagens, enfim, uma série de argumentos a nosso favor. Tornando este um sítio apetecível para se descobrir teremos em mãos algo extraordinário. 
Está acompanhar esta controvérsia com o Diretor do Museu Nacional de Arte Antiga e o ministro da Cultura? O que lhe parece?
Tenho todo o respeito pelo António Filipe Pimentel e pelo trabalho que fez no MNAA. Pelo ministro também, que me parece ter sido uma boa escolha, para pacificar o Ministério. Mas nesta questão parece-me haver um duplo disparate. Como país pequeno, em que todas as pessoas se conhecem, às vezes algumas sentem a necessidade de, como dizia o Nadir Afonso, extremar as suas posições para se fazerem ouvir. O Pimentel está ali como diretor e já não sabe bem o que há de fazer para chamar a atenção sobre o que o Museu precisa. Penso que ele pisou a casca da banana ao ir a um congresso ou a umas jornadas de Verão de um partido qualquer (CDS), dizer umas coisas. O problema não é o que ele diz mas o erro que revela, porque ele não precisa de ter mais funcionários. O que ele precisa é de tecnologia. Com todo o respeito, o que essas declarações revelam é uma pequenez de análise. Um museu hoje não precisa de ter um funcionário por sala. Eu preciso de câmaras. Eu aqui tenho câmaras de vídeo-vigilância. Eu ligo aqui (pega no telemóvel) e vejo as salas todas. Tenho que ter alarmes. O que ele precisa no MNAA não é de mais funcionários, mas de ter aquilo dotado da tecnologia que lhe permita assegurar que as obras não são vandalizadas. Não é por ter mais funcionários que isso não acontece. O que é preciso é tornar aquele um museu que está no século XXI. Pedir mais funcionários é contracorrente. Qualquer dia os políticos vão ter de dizer a verdade às pessoas, dizer-lhes nomeadamente que não se combate o desemprego. Não é possível. Se queremos um mundo progressivamente mais eficiente, mais conectado, mais respeitador do ambiente, etc., temos de olhar friamente para a coisa.  Temos de reduzir o número de pessoas que trabalham, que consomem recursos para trabalho e dotar as estruturas de máquinas, robôs, geminóides. Quer nós queiramos quer não, o mundo vai caminhar por aí. O grande desafio que se coloca é o que fazer às pessoas. Não é arranjar mais empregos para as pessoas estarem ali de castigo. Como eu vi, por exemplo, em Moçambique. Dois tipos, um ditava e o outro escrevia à mão a Constituição. Isto era o trabalho de duas pessoas em pleno século XXI. Há as fotocópias, há toda a tecnologia de reprodução, e há um homem que está a ditar, às vezes mal, e outro a anotar… Não podemos, para manter as pessoas ocupadas, dar-lhes trabalhos miseráveis. Temos de dignificar o ser humano e isso faz-se através do quê? Da arte e da cultura, da sua capacidade de expressão enquanto ser. Por isso defendo uma cidade com arte e cultura, onde as pessoas tenham desde tenra idade capacidade de expressão. Os gregos já defendiam isso, não é nada de novo. É regressar a um modo de vida felizmente já não assente no trabalho escravo mas sim em máquinas. Porque é que hei-de forçar um desgraçado a estar de sol a sol na lavoura se uma máquina pode fazer isso. Só para a pessoa estar ocupada e justificar o dinheiro que recebe? Isso parece-me uma violência. Se uma pessoa quer estar na agricultura biológica, muito bem, mas ir para a agricultura porque não tem outro modo de sustento… A sociedade tem é de garantir às pessoas meios para existirem com dignidade. Daí a experiência na Finlândia, que não sei se chegou a ir para a frente, quanto ao rendimento universal garantido. Um valor base entregue a todas as pessoas. Eu acho que o futuro terá de ir por aí, com as Apples deste mundo a deixarem de pagar 50 euros por cada milhão de euros de lucro e a pagarem o valor justo. Terão de ser as grandes corporações, que são quem lucra de facto com a globalização, a contribuírem muito para o sistema de modo a terem consumidores. 
Como fez o Ford ao aumentar os salários dos trabalhadores para que pudessem comprar os carros que estavam a fabricar.
Claro. Senão não há consumidores. E criar margem para as pessoas terem possibilidade de encontrar outros meios de dar algum retorno, contribuir face àquilo que obtêm da sociedade. Isto para explicar que não posso defender um discurso que é assente na ideia do que é preciso são mais funcionários. Isso contraria o atual estado da arte. Estive em museus, vários pelo mundo, onde vi quatro ou cinco funcionários visíveis. Estou em salas onde não vejo ninguém, mas sei que não posso fazer alguma coisa a uma obra ou caem-me logo em cima dois seguranças. Um funcionário, ou dois ou três vigiam uma série de salas se tiverem os mecanismos certos. Condenar um desgraçado, como se vê em muitos museus nacionais, a estar todo o dia sentado a um canto a controlar as pessoas que entram e que saem, isso parece-me de alta ineficácia e muito redutor. Eu, no lugar dele, defenderia outro tipo de políticas, e se calhar até teria um eco maior junto da opinião pública e, eventualmente, no Ministério.