Meu amigo,
Que raio de tempo este! Refiro-me ao meteorológico: uns dias de calor tórrido com bafos secos do siroco a recordar o nosso trilho africano, para logo de seguida termos de usar casaco de aconchego ao fresquinho noctívago.
Como estás tu? Continuas por Terras do Demo ou já te puseste a caminho? Se é para vires à capital, foge menino, que isto enxameia de turistas e de nativos a fazer de camones.
O prédio está oco, permaneço eu que não tenho vontade de me aventurar a sul e que, se vou para norte, já não regresso. Pela noite fico alerta aos ruídos e estalos que percorrem os vários apartamentos. Parece que, despejado de inquilinos, o imóvel aproveita para se espreguiçar.
Quero partilhar contigo um texto que li sobre uma experiência acerca da amizade que me parece uma interessante reflexão de vida.
O estudo chama-se “És amigo dos teus amigos?” e entre os seus objetivos está o de demonstrar que a má perceção dos laços de amizade pode dificultar a capacidade de promover alterações de conduta.
Os resultados parecem revelar que sofremos de um grave equívoco. Foram analisados os vínculos de amizade de 84 indivíduos entre os 23 e os 38 anos, alunos de aulas de administração de empresas, a quem se pediu que classificassem entre o um e o cinco o grau de relacionamento próximo com outros, que ia desde “Não conheço esta pessoa” até “É um dos meus melhores amigos”.
O sentimento era mútuo em 53% dos casos, enquanto a expetativa de reciprocidade atingiu os 94%. Isto coincidiu com estudos idênticos, realizados na década passada, que incluíram mais de 92 mil pessoas, com valores semelhantes.
Ou seja, como vês por estes números, metade dos nossos amigos não nos consideram como tal, e não sei se serve de consolo a hipótese consequente de que a metade dos que consideramos ser apenas nossos conhecidos se declarem, ingenuamente, nossos amigos.
À parte transtornos íntimos, estas conclusões parecem capazes de avariar a máquina social da cooperação humana. E nesse sentido é provável que tu e eu estejamos sujeitos ao mesmo depravado equívoco. Mais tu do que eu, claro!
Alguém disse que “não há amigos, só instantes de amizade”. Com o passar do tempo parece-me cada vez mais uma frase corajosa, porque não é do agrado dos que se consideram nossos amigos e, com cética profilaxia, desanima os que poderiam sê-lo.
Esta sempre me pareceu uma afirmação cheia de conhecimento sobre a natureza humana e uma maneira realista e inteligente de afrontar o desânimo da separação, incluindo a deslealdade.
As circunstâncias, os trabalhos e os dias vão distribuindo as pessoas em torno das idades. Essas mesmas circunstâncias afastam-nas. Talvez seja melhor entender tudo isso com naturalidade e responsabilizar mais as circunstâncias do que os homens, que são conduzidos por azares e forças que nem sempre podem controlar.
Creio que a nossa amizade subsiste por uma condição essencial a partir da qual tudo acontece: tu és tu e eu sou eu.
E, por isso, penso em muitas ocasiões na obrigação de valorizar a diversidade da natureza humana, especialmente e a propósito das afinidades políticas.
Como é possível que em partidos e organizações políticas entre pessoas que partilham a mesma visão das coisas floresçam inimizades e ódios ao extremo a que assistimos?
Há uma explicação que se relaciona com a concorrência e o desejo de poder e com o contexto em que essas lutas se concebem, que é o círculo da afinidade, o único onde, na realidade, se pode produzir a traição, o único onde se pode constatar que são afinal os meus que vêm contra mim.
Não achas estranho que te apareça alguém que viveu o mesmo, que pensa o mesmo, lê o mesmo, escuta o mesmo, come o mesmo e que, por uma regra misteriosa, te impede a menor intimidade?
Agora imagina que te obrigam a ser amigo de um ser igual absolutamente incompatível. A essa panela de pressão emocional costumam chamar disciplina partidária.
Amigo, resta-nos a convicção de que existe um lugar e um momento de plenitude feliz, uma idade de ouro em que os amigos se possam abraçar com nome próprio e em liberdade voluntária possamos dizer, serenos, o tempo que malgastámos.
Aguenta mais um pouco. Abraço forte.