Os antepassados dos Pokémons foram os gambozinos. Existem, no entanto, três diferenças essenciais que marcam toda a diferença entre as criaturas.
O Pokémon é virtual e apanhado de forma digital; para caçar gambozinos bastava um saco e um pau. O Pokémon é sinalizado dia e noite; os gambozinos nunca se viam, só apareciam de noite em zonas ermas e podiam estar em qualquer lado.
O Pokémon está desenhado, o criador deu-lhe silhueta, e o mais feroz deles não consegue suscitar mais que meio sorriso. Os gambozinos não têm forma, não se lhes conhece a figura, todos os relatos chegados até nós não conseguem descrever o aspeto do bicho, tal era o terror de estar frente a frente com o malvado, e demonstram também a sua natureza fugidia.
O gambozino é uma lenda para intrépidos e cagarolas. É como o Yeti, o abominável homem das neves, ou o bigfoot. Repousa na imaginação e pode despertar em qualquer momento.
Como dizia Joseph Bramah, o histórico cientista inglês e reconhecido perseguidor de gambozinos, “não somos nós que seguimos o gambozino, é o gambozino que nos caça a nós”.
Em jovem fui um afamado organizador de caçadas noturnas aos gambozinos em Monsanto, junto ao Bairro da Ajuda, onde vivi, tão popular que tive de dar baixa da atividade, após uns clientes, desencantados com os resultados por míngua do mítico animal e percebido o figuraço efetuado, terem decidido caçar-me a mim.
A febre de verão da caça digital ao Pokémon traz consigo o tradicional coral de alminhas que acham ter por missão a regulamentação do certo e do errado, ordenar o quotidiano dos outros, padronizar o que é aceitável e, logo, para elas compreensível, e o que é absurdo e, logo, para elas uma ameaça. Andam desorientadas como baratas no estio, de fio de prumo na manápula e procedimentos no bolsito, a perorar tal Torquemada contra o fenómeno.
Pensam assim porque hoje é quinta–feira e necessitam de antipatizar com alguém de forma convicta. Acordaram cansados com o calor e a humidade e decidem que todos os caçadores de Pokémon são uns cretinos. Decidem desta forma porque os veem a reunir–se nos parques e praças, cruzam-se com eles nas estradas e nas praias, nos cafés e em estádios, e não entendem o que raio fazem. Só pode ser ópio.
Não param para pensar que, nesse momento, também se estão a reunir os habituais da sueca para jogar até que as cartas implorem descanso, ou que uns aficionados estão a reunir o clube de leitura apesar de ser agosto. E que algures também deve estar a acontecer uma convenção de criadores de canários, uma rodada de escanções de vinho branco, um congresso de entusiastas de discos de vinil. É possível que o clube de motas Vespa tenha iniciado uma viagem e que os admiradores de cometas aproveitem um festival para fazer brilhar conhecimentos. A lista seria interminável e variada de interesses como a vida. Então qual é o problema?
A razão para a repulsa emocional ao diferente, a negação de aceitar que a diferença do outro, expressa nas suas opções e manias, não faz dele melhor ou pior e que o tempo que vem, mesmo complexo, é um tempo novo, recorda-lhes a mortalidade e põe em causa toda a herança acumulada das suas convicções.
Repudiar ao ponto de odiar as ocupações dos outros é também uma manifestação de impotência. Incapacidade e impotência para estabelecermos as nossas prioridades e assumirmos um discurso fora do estimulo consumista do mercado e da propaganda do poder.
E isto não significa sermos ingénuos ao ponto de pensar que a capacidade de romper com as grilhetas da intolerância faz, só por si, de nós homens livres, mas seguramente fará de nós homens um pouco mais livres. Não sei se este é mais um artifício capitalista de controlo dos incautos, se estamos cada vez mais infantilizados, se procuramos espaços artificiais de fuga à realidade. Pode ser tudo isso ou, como dizia Freud, “por vezes um pénis é só mesmo um pénis”.
Entretanto, se o animal é a arma do inimigo para nos iludir e manter escravos, vamos por ele matar o peçonhento. Assim como assim, temos de começar por qualquer lado. Olha o bicho!