Desce-se tão baixo no amor. Uma infecção quase inescapável num ambiente armadilhado de delirantes ideais românticos, desenvolve-se no nosso íntimo como uma panaceia à medida de tudo o que nos falta, e depois lança-nos sobre um caminho de obstáculos que irá testar os limites da nossa capacidade de sacrifício.
No seu livro mais recente, “O Curso do Amor” (Dom Quixote, 2016), Alain de Botton vê o amor como uma vítima constante do ideal romântico, essa arquitetura enraizada em nós como uma fantasia engendrada pela solidão, tantas vezes contra o mundo, em reacção a desilusões: uma solução para a necessidade de consolo que sentimos e que nunca se satisfaz. Como um frasco de essências colhidas, um perfume aflito por envolver alguém, à primeira oportunidade lançamo-lo sobre uma pessoa tentando capturá-la para o lado do sonho. Mas, se na vida esse é só um início cheio de equívocos, tanto na literatura como no cinema e na música, o início da história é muitas vezes a história toda. O dragão morto junto à torre, o terrível feitiço desfeito, e o imenso jardim do “e foram felizes para sempre” abrindo-se de par em par. Raros são os que preferem ver o dragão não tanto como um último obstáculo mas como um aviso, uma espécie de aperitivo para tudo o que se terá de engolir em nome do amor.
Num romance arquitectado como uma casa de vidro, tudo adquire um contorno exemplar, no sentido em que cada passo, cada acontecimento se torna a ilustração de uma ideia. Esta é assim uma narrativa feita de transparências, em que a vida de um casal se desenrola como num laboratório. A história que seguimos é a de um casamento. Desde o enamoramento, a vertigem encantadora entre duas pessoas que se descobrem como a resposta às preces um do outro, ficamos muito à-vontade com um registo jornalístico, embora com um tipo de atenção aos detalhes que nos coloca numa perspectiva forense, como se a qualquer momento pudéssemos resvalar para as páginas de um policial. Há algo de esquemático na abordagem à vida comum de Rabih e Kirsten.
De Botton não circula literariamente à sua volta, mas interrompe a narrativa com passagens em itálico em que tece comentários, perspectivando a acção, atravessando o romance de um pendor ensaístico. Estas radiografias misturam um tom mais analítico a uma certa dose de ironia, e sem nunca nomear as personagens pelo seu nome, há algo nestas reflexões que corta a tendência para nos envolvermos emocionalmente na história.
Mas se nas primeiras páginas não nos é difícil assumir a frieza que nos permite olhar Rabih e Kirsten como a ratos numa ilustrativa ficção, à medida que o desgaste dos compromissos do quotidiano – o trabalho, as tarefas domésticas, os problemas com dinheiro, as exigências para cuidarem e educarem os dois filhos – vai causando mossa na relação, tornando-os irritáveis e colocando-os em confronto, torna-se difícil não segui-los até ao inferno. Assim, é natural que tenhamos a tentação de passar à frente as partes em itálico, menos interessados em analisar num plano abstracto os desafios da vida em casal e mais preocupados em perceber se estes dois se safam.
Mas, como conclui às tantas o narrador, Rabih e Kirsten perdem o parceiro e ganham um inimigo “porque raramente viram os seus conflitos reflectidos de forma empática na arte que conhecem. Se pudessem ler sobre si mesmos como se fossem personagens de um romance, talvez assim fossem levados a sentir uma breve mas útil sensação de pena pela sua situação, e dessa forma aprendessem a dissolver alguma da tensão que surge nas noites em que, depois das crianças estarem na cama, vem à tona a questão aparentemente desmoralizadora mas na verdade grande e significativa sobre de quem é a vez de passar a ferro”.
O talento de Alain de Botton é evidente na forma como não se limita a encenar de forma plausível a vida de um casal, mas o faz com o tipo de minúcia em que parecemos estar diante de um relato nãoficional, com Rabih e Kirsten a ganharem vida como personagens individualizadas, com diferenças de temperamento e personalidade, vindos de mundos diferentes – ele filho de um libanês e de uma alemã, teve uma infância espalhada entre alguns países, perdeu a mãe cedo e viu o seu lugar ocupado por uma madrasta distante e fria; ela escocesa, criada pela mãe desde muito nova depois do pai abandonar as duas não por uma segunda família mas antes para ficar sozinho… Este reparo é sublinhado pelo narrador, e é exemplar da forma como a abordagem algo clínica do romance consegue por vezes ser bastante eficaz ao pontuar a narrativa de uma série de estímulos à empatia do leitor.
O retrato da vida dos outros que emerge é um documento em que a imaginação mimetiza os ritmos ordinários da vida, preenchendo a história dos sinais que nos permitem sentirmo-nos próximos deste casal, mais que isso, projectarmo-nos neles. Puxando o véu, abatendo uma a uma as concepções românticas do amor, o narrador consegue ilustrar a verdadeira complexidade e proeza de se construir uma relação amorosa duradoura. Ao ponto de equipará-la a uma forma de arte.
Contrariando uma cultura que tem tanto de romântico quanto de irrealista e irresponsável, num texto que publicou recentemente no “The New York Times”, Alain de Botton fazia um apanhado de algumas das noções desenvolvidas em “Curso do Amor”, e advertia: “Temos de trocar a concepção romântica por uma trágica (e em alguns momentos cómica) da consciência de que cada pessoa irá frustrar, enraivecer, chatear, enlouquecer e desapontar-nos – e nós iremos (sem malícia) fazer-lhes o mesmo. Não há fim para a nossa sensação de vazio e incompletude. Mas nada disto é invulgar ou motivo para o divórcio. Escolher com quem nos queremos comprometer é meramente uma questão de se identificar a que variedade particular de sofrimento mais aptos estaremos a sacrificar-nos.”
De Botton sugere, assim, que uma filosofia pessimista pode ajudar-nos a atravessar os momentos piores de um casamento. “Pode parecer estranho, mas o pessimismo aliavia a excessiva pressão imaginária que a cultura romântica em que vivemos coloca sobre o casamento.”
Contrariando a noção de que através do casamento o que as pessoas procuram é a felicidade, o filósofo diz-nos que “aquilo que realmente buscamos é familiaridade”. “Estamos a tentar recrear nas nossas relações na vida adulta os sentimentos que experimentámos na nossa infância. O amor que a maioria de nós viveu nos primeiros anos acabou muitas vezes confundido com outras dinâmicas mais destrutivas: a vontade de ajudar um adulto que estava fora de controlo, a sensação de se ser privado do afecto de um dos pais ou ter receio do seu temperamento, o não se sentir suficientemente seguro para comunicar o que sentimos. Isto explica que já crescidos demos por nós a rejeitar alguns candidatos não por não serem más pessoas para se casar mas porque são demasiado bons muito equilibrados, maduros, conpreensivos e leais. (…) Casamos com as pessoas erradas porque não associamos sermos amados a sentir-nos felizes.”
Alain de Botton regressa assim ao tema do seu primeiro romance (“On Love” – também conhecido como “Ensaios sobre o Amor”) com que se estreou em 1993, aos 23 anos. Aquele livro marcou uma entrada triunfal para um autor que desenhou o seu percurso no sentido de assumir um papel cada vez mais interventivo, especialmente na critica aos modelos de educação. Depois dos três romances que escreveu ainda na juventude, virou-se para o território da não-ficção, com vários livros de ensaios em que examina filosoficamente problemas comuns da vida moderna. Vários dos seus livros tornaram-se best-sellers e nasceu em seu redor um pequeno fenómeno cultural que boa parte academia desconsidera, classificando-os como exemplos de “filosofia pop”.
O desdém pela abordagem de Botton não apaga a evidência do seu talento para problematizar aspectos nucleares da condição humana, e fazê-lo não só nos seus livros mas utlizando as novas plataformas de comunicação, aperfeiçoando um estilo que se tornou a sua marca pessoal. Imediatamente acessível, como orador tal como na sua escrita, as suas ideias articulam-se fluidamente enquanto lança uma matriz assustadoramente ampla dos assuntos, traçando inusitados atalhos entre diferentes áreas do conhecimento e das artes. Jornalista, romancista e filósofo, de Botton fundou a School of Life juntamente com uma comunidade de pensadores, uma organização com sede em Londres que oferece uma série de cursos e workshops com uma perspectiva inovadora no sentido de ajudar as pessoas a lidarem com os desafios da existência no quotidiano.
Alain de Botton. Uma filosofia pessimista pode salvar o seu casamento
O filósofo suíco volta ao terreno da ficção numa investigação à verdadeira natureza do amor, tantas vezes vítima dos ideais românticos que nos envolvem e contagiam, e que acabam por revelar-se o grante factor que desmoraliza os casais e os leva a divorciar-se