Viagens à borla. Governo fecha caso com código de conduta que não vai mudar nada

Viagens à borla. Governo fecha caso com código de conduta que não vai mudar nada


Casos como o que envolve o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais está previsto na lei há décadas. Qualquer código de conduta que venha a ser criado será redundante.


O governo anunciou ontem à tarde a criação de um código de conduta para por fim a dúvidas éticas e legais como as que surgiram com a oferta por parte da Galp de duas viagens ao secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade. Atualmente já existe um código de conduta para a Autoridade Tributária, que é visto por muitos juristas como redundante, uma vez que a lei continuará a falar mais alto e, essa, já define o que há a fazer em casos como este, há várias décadas.

O anúncio da criação de um código de conduta foi a forma encontrada pelo executivo para tentar “encerrar” um caso que começou por envolver um governante e já arrastou outros dois: os secretários de Estado João Vasconcelos e Jorge Costa Oliveira. Augusto Santos Silva, ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros – que substitui o primeiro-ministro nas férias deste -, admitiu que no limite poderia não ser aceitável o comportamento de Rocha Andrade, defendendo que as “dúvidas” ficaram dissipadas com a abertura demonstrada por este governante, bem como por João Vasconcelos e Jorge Costa Oliveira, para devolver o dinheiro das deslocações a França. Em causa estão viagens oferecidas pela Galp a membros do governo para que assistissem a jogos da seleção portuguesa no Euro 2016.

O esclarecimento do executivo liderado por António Costa acabou por levantar ainda mais dúvidas do que as que já existiam – nomeadamente com a referência ao novo código de conduta.

Santos Silva garante que não foi gesto de cortesia Começando por garantir que os convites não foram gestos “de cortesia de A em relação a B”, mas sim “uma iniciativa pública de apoio à seleção nacional de futebol promovida junto de várias personalidades e custeada por um dos patrocinadores da Federação”, Santos Silva disse que é preciso evitar que casos menores se transformem em casos maiores: “A lei diz e bem que havendo uma proibição geral de aceitação ou entrega de ofertas há gestos de cortesia que são aceitáveis por razões que têm a ver com os usos e costumes ou com a adequação social. Como aparentemente isto suscita algumas dúvidas de interpretação, o Conselho de Ministros aprovará ainda este verão um código de conduta cuja norma relativa a estas matérias será taxativa”.

Um código para regular o que já está previsto na lei “Estas situações estão previstas há mais de 100 anos e têm estado sempre previstas, e nem sequer é só no Código do Procedimento Administrativo, é na legislação criminal. Quer no Código Penal, quer em legislação avulsa”, explicou ao i o advogado Paulo Saragoça da Matta, esclarecendo que “a criação de um novo código [de conduta] é algo que não faz qualquer sentido”.

Saragoça da Matta referiu ainda que este anúncio faz parecer que o novo código “iria valer mais do que o que já está na lei há décadas”.

Não seria, porém, a primeira vez que nos últimos anos se criaria um código de conduta redundante. Ainda no governo de Passos Coelho foi criado um documento idêntico. 

Consultando o Código de Conduta dos Trabalhadores da Autoridade Tributária (AT) – criado no executivo de Passos Coelho – conclui-se também que não é aceitável o recebimento de qualquer oferta, sobretudo por parte de um dos maiores contribuintes portugueses, como é o caso da Galp. 

O caso que envolve Rocha Andrade ganhou ainda outras proporções pelo facto de a empresa ter interposto recursos hierárquicos (para o ministério) por discordâncias em relação aos impostos extraordinários que tem a pagar. Em 2014, aliás, esse imposto foi aplicado pela primeira vez à Galp, REN e EDP, sendo que só a Galp conseguiu não pagar os 100 milhões de euros. O imposto correspondente a 2015 é de 150 milhões de euros.

Se se tivesse por base o Código de Conduta da AT a resposta a qualquer dúvida seria clara: “Os trabalhadores não devem pedir ou aceitar presentes, hospitalidade ou quaisquer benefícios que, de forma real, potencial ou meramente aparente, possam influenciar o exercício das suas funções ou colocá-los em obrigação perante o doador. A aceitação de ofertas ou hospitalidade de reduzido valor (objetos promocionais, lembranças, …) não é censurável se não for frequente, estiver dentro dos padrões normais de cortesia, hospitalidade ou protocolo e não for suscetível de comprometer, de alguma forma, ainda que aparente, a integridade do trabalhador ou do serviço”.

E foi a esta exceção – idêntica à que está definida na lei – a que Rocha Andrade se tentou agarrar desde que o caso foi tornado público pela revista “Sábado”: “O convite foi natural, dentro da adequação social [e por isso não houve] conflito de interesses”.