Um dia impediram-no de tocar numa festa no Liceu Camões, jurou que ia fazer parte de uma grande banda de rock. Criou os Sheiks, o grupo na senda dos Beatles com mais sucesso em Portugal. Um êxito que lhes era pago com uma sandes e um sumo, dado que não tinham idade para tocarem em discotecas. Tirou arquitetura, organizou uma greve aos exames antes do 25 de Abril. Participou duas vezes no Festival da Eurovisão tendo obtido a melhor classificação de sempre de Portugal. Criou com Joaquim Pessoa duas canções célebres nos anos pós-revolução: “Amélia dos Olhos Doces” e “Alcácer que Vier”. Continua a cantar, nem que seja para tentar derrubar primeiros-ministros.
Com que idade começou a pensar que era músico?
A minha mãe tocava, os meus irmãos também aprenderam música, mas a ideia que podia ser músico tive-a aos 13 anos quando comecei a tocar viola. Eu tocava piano, as músicas clássicas normais, mas foi por essa idade que conheci um gajo na rua que tocava guitarra, o Jorge Barreto, e a partir daí pensei que a malta podia fazer um duo tipo Os Conchas [duo musical que ganhou um concurso da Rádio Renascença]. Começamos a tocar pelos bancos da Alameda [Afonso Henriques] para tentar qualquer coisa. Mas há mesmo um momento que eu assumo que quero ser alguma coisa na música. Tinha 14 anos e lembro-me perfeitamente que houve um espetáculo no Liceu Camões, e o gajo que estava comigo – era um ano mais velho que eu mas era um daqueles putos tipo capitães de areia que conhecia Lisboa inteira, vivia com a avó e dizia-lhe que ia lá abaixo e pirava-se – disse: “Vamos ao Liceu Camões, vai lá estar um grupo que são os Lucenas e talvez nos deixem tocar e alguém nos veja”. E a malta lá foi, e quando estávamos atrás do palco, pedimos as guitarras aos gajos a ver se podíamos tocar algumas coisas. Mas um deles voltou-se para nós e disse: “Não empresto nada, nem sei quem vocês são, saiam daqui, agora vêm aqui estes palermas chatear a malta”. E eu voltei para casa a pé, ao fim da noite, com um ataque de raiva e a dizer: “Estes gajos vão ver, vou ter um grupo do caraças”.
Voltou a encontrar essa pessoa?
Voltei, este gajo tentou tocar no grupo [os Sheiks] e agarrou a minha guitarra e eu disse-lhe: “Tu não mexes nessa merda, se fazes favor”. E ele a protestar, “porque é que estás tão agressivo?”, e eu, “não me esqueço é que tu etc e tal”. Ele não se lembrava de nada, o que é normal, costuma lembrar-se só quem fica chateado. E eu tinha ficado raivosíssimo, e a partir daí tentei construir um grupo, em duo, em trio, … mas era tudo naquela onda de “Chat Sauvage” [Grupo de rock francês formado a 12 de Maio de 1961] e Elvis Presley, eu tocava piano e outros o baixo. Na altura em que eu estava no Liceu Francês, eles tinham muitas atividades ligadas às artes e havia um conjunto que fazia festas. Passei a integrar esse conjunto com o Barata Moura, um tipo chamado Cardoso, nunca mais o vi, e um gajo na bateria, que foi ou ainda é jornalista que é o Costinha, João Alves da Costa, que escreveu as “Bruxas à Portuguesa”, entre outros livros [a fazer fé na Wikipédia tem uma vasta carreira e bibliografia entre os quais o clássico “Mil Lésbicas Submarinas”], e depois mais tarde foi baterista dos Jets. Foi nessa altura que comecei a fazer uma banda a sério.
E o que é que se ouvia em Portugal naquela altura?
Chats Sauvage, Elvis, Tony de Matos e essa malta, que nós achávamos que eram cantores foleiríssimos.
Isso é antes do Beatles?
Sim.
Tinha a perceção que vivia numa ditadura?
Tinha, embora essa realidade fosse muito anulada pela própria família. Eles anulavam muito essa coisa. Como eu era mais novo não queriam grandes confusões, embora eu percebesse o esforço que o meu pai fazia para manter a malta a estudar em colégios. Apercebi-me mais tarde que o meu irmão do meio [Jaime Mendes] saía com o carro para uns sítios que não dizia, e fazia umas reuniões lá em casa, com o Rui D’Espiney e o Armando Miredores e outra malta, que eu agora sei que eram todos militantes do PC, mas eu não percebia nada destas coisas. Eu só ganho mais consciência quando o meu irmão Jaime tem de fugir para o estrangeiro e o meu irmão Abílio é preso na universidade. O meu pai protegia-me muito, muito mais tarde é que percebi que ele trabalhava que nem louco no consultório porque não podia exercer nos hospitais, porque se tinha recusado a assinar aquelas declarações [documentos que o regime obrigava a assinar a quem trabalhava na função pública ou ensinava dizendo que não tinha qualquer simpatia com as ideias do Partido Comunista Português]. A minha consciência política objetiva é muito tardia, é apenas com 19 anos, quando venho de Paris e deixo o grupo [Sheiks] e entro na universidade.
E os Sheiks?
Sim, formamo-nos em 63, no ano seguinte gravamos um disco e depois é muito rápido. No fim de 66 a malta faz o mês de dezembro em Paris e em janeiro de 67 eu saio.
E como é o percurso desde o conjunto do Liceu Francês?
Já ando, em paralelo, a formar outras bandas. A primeira foram os Cavaleiros Negros, depois Black Riders, depois foi os Wings Of Revenge e uma data de coisas. A malta tocava na Matinha, éramos convidados para tocar nas sociedades recreativas, basicamente tocávamos nessas associações: a Matinha, a Casa da Madeira, a Casa dos Açores , etc. Fazíamos esse percurso ainda sem ser Sheiks. Os Sheiks são um bocadinho mais tarde. Vamos trabalhar para uma discoteca no Conde Redondo, chamada o Tosco, era uma coisa muito in e a gente apareceu lá. O Chaby, que era do grupo, tinha um outro grupo que tocava lá, que eram uns gajos da Casa dos Estudantes do Império, que se chamavam os Leopardos ou coisa que o valha, e esses tipos foram passar um Carnaval a essa discoteca. E eles disseram: “Apareçam e talvez possam tocar alguma coisa”. E a gente foi e tocou e o dono mandou embora os Leopardos e ficou connosco.
E pagavam-vos?
Pagavam-nos uma sandes de fiambre e um sumo de laranja. Éramos putos e não podíamos lá estar a tocar à noite. De vez em quando, havia um gajo que dizia: “Vem aí a polícia”, e a malta pirava-se lá para o sótão. Depois os polícias iam embora e malta voltava a tocar.
Mas era mesmo uma sandes só, nem álcool?
Nada, nada, não deixavam a malta beber álcool. Depois fizemos uma turnê no Algarve que foi uma coisa sinistra, sem apoios nenhuns e que foi um flop. O dono daquilo comprou-nos os instrumentos, menos ao Paulo [de Carvalho] que era um gajo que já trabalhava, tinha uma consciência diferente. Nós éramos todos estudantes e gastávamos o dinheiro dos pais. O gajo da boate quis comprar os instrumentos à malta, e ele disse logo: “Não, não eu compro o meu instrumento”. Já sabia o que poderia acontecer, como aconteceu. O gajo quis-nos explorar ao máximo e organizou uma turnê no Algarve, estamos a falar creio eu no verão de 64, então a malta vai para lá. Tínhamos teatros marcados Faro e Portimão.
Já como Sheiks?
Sim, mas a gente não tinha repertório para espetáculos, tínhamos temas para pôr a malta a dançar e pouco mais, e depois tocar uma meia horazita, e depois tornar a repetir, e depois tornar a tocar os mesmo temas. Não tínhamos estaleca nenhuma para fazer espetáculos, foi uma barraca. Mas para tu veres as condições, o gajo disse-nos: “Vocês vão todos fazer a turnê e vão no carro do Miranda”. O Miranda era o técnico de som inventado, ele não percebia nada de nada. Era suposto irmos todos num carocha com a aparelhagem, os instrumentos e nós. E ele dizia-nos: “Têm que ir que é para poupar dinheiro”. E nessa altura a gente protestou, que não íamos naquelas condições. E o Rui – o Rui Simões, que veio a fazer o filme “Deus, Pátria, Autoridade”, e era um frequentador daquela discoteca e gostava à brava da malta – ofereceu-se: “Vocês pagam-me a estada e eu vou com vocês”. Ele tinha um Vauxhall Viva, um carrito. E o Miranda lá foi no Carocha e nós fomos no carro do Rui. Quando aquilo acabou o dono da discoteca chamou-nos e disse: “A aparelhagem e os instrumentos ficam para mim, eu vou vendê-los, não há mais Sheiks para ninguém vocês vão à vossa vida”. E o único que ficou com a aparelhagem foi o Paulo. Nessa altura o grupo era eu, o Jorge Barreto, o Chaby e o Paulo.
E no Algarve também foram pagos em sandes?
Pá, não faço ideia. Acho que não recebemos nada. Não me lembro. Acho que tínhamos as viagens pagas que eu lembro-me de ter ido de avião para o Porto, que era onde fazia férias com a família. Foi a primeira vez que andei de avião. O gajo tirou-nos tudo, menos ao Paulo que ficou com a bateria, de modo que o grupo desfez-se, e eu fui tocar com um grupo que nunca chegou a atuar comigo, que eram os Deltons.
Mas retomaram os Sheiks depois?
O nosso ponto de reencontro é a Mexicana. Não percebo a razão, mas muitas vezes contam e escrevem mal esta história, toda a malta que escreve diz que era o Vá-Vá. Esse sítio é uma outra coisa, serve quando se tem 30 anos. Quando somos putos o centro é A Mexicana. Nós somos daquela zona, Avenida João XXI e por ali, o Paulo é que era de Alvalade, mas trabalhava na Baixa e vinha de elétrico. O Paulo foi-me apresentado pelo Jorge Barreto que disse: “Este gajo é muito porreiro, tem uma voz muita fininha, queres ver o gajo?”. E nós fomos à Camélia, uma pastelaria que tinha uma esplanada, e ouvimo-lo ali. E aquilo caiu muito bem. “Tu não queres tocar”, perguntei-lhe eu, e ele não estava muito a fim, “não, eu trabalho”. Mas lá o convencemos dizendo que nós também estudávamos e que íamos arranjar forma de organizar o tempo com ele. A chatice é que já havia um outro baterista, o José Manuel Costa Pereira, que já tinha comprado uma bateria para tocar com a malta, aquelas coisas de putos, e tivemos que lhe dizer: “Agora vais ter que ir embora porque apareceu um gajo que canta”. O meu sonho era ter sempre quatro gajos a cantar, que era para fazer a diferença da maioria dos grupos que tinham só um gajo a cantar que era tipo Cliff Richards and Shadows, e eu como não gostava disso, não me diziam nada musicalmente…
Os Beatles tinham quatro gajos a cantar…
Foi a loucura quando eles apareceram, eu pensei logo que era aquilo que nós queríamos fazer e é por aqui que a gente vai seguir. Mas nessa altura, na Mexicana, a gente encontra-se lá, e é o Rui que nos diz: “Vocês querem que eu seja vosso agente?”. Ele vendia nas Páginas Amarelas e acho que era um belíssimo vendedor, e disse-nos, “atenção, vou deixar isto para vos lançar”. Na altura já havia Beatles e eu pensei que era uma excelente ideia. Ele ficou a trabalhar e a partir daí foi a loucura, até ao momento em que eu saí. A ida a Paris foi um bocadinho o final. Eles depois continuaram….
Porque é que decidiu sair?
O meu irmão já estava na Suíça exilado, e eu tinha planeado sair também do país. Ele tinha-me dito, “faz o sétimo ano, para quando vieres para aqui ires para a universidade”. Eu tinha esse dever com o meu pai, tinha a consciência que aquele gajo que trabalhava como um cão, era de manhã, à tarde e à noite, e a certa altura pedi um período de “celibato” nos Sheiks para acabar o liceu, a malta vinha muita cansados.
Das gravações em Paris?
Nós fomos gravar e tocar à noite. A gente acabou fazer uma vida que era a loucura. E pedi um intervalo, faltavam-me duas disciplinas para acabar o sétimo ano.
E eles não lhe deram esse tempo?
Não foram eles, acho eu. O Rui já se tinha pisgado, tinha ido para a Bélgica para se safar à tropa e à guerra. E no seu lugar havia aqui um tipo em Campo de Ourique que era o João Martins da Rádio Renascença, e quando reunimos em casa do Edmundo, e eu coloquei a minha posição, e o gajo disse: “Ou estudas ou cantas, as duas coisas não podes fazer”. Mas eu disse-lhe, “é só um intervalo até ao verão, só faltam quatro meses para eu fazer os exames”. O plano era pirar-nos para o estrangeiro e ir ter com o Rui e fazer lá um grupo. E eles disseram que não, e eu saí com muita pena.
E não se zangou com eles?
Na altura zanguei-me. Aliás fiquei sem nada. Disseram-me que foram roubadas as aparelhagens e as violas e eu fiquei sem nada. Mas é costume nestas coisas ficar-se sem nada. Fiquei muito ofendido com os gajos.
E quando concorre pela primeira vez ao festival ainda estava nos Sheiks?
Não, aí já tinha saído. Estava na universidade, isso é em 68.
Mas acaba por não ir para o estrangeiro.
Acabo por não o fazer, porque entro para a universidade com a idade limite que eram 20 anos, o meu curso eram sete, tendo sempre adiamento à tropa, e quando me vou pirar e fazer o estágio, dizem-me que não é preciso. Aliás, eu tenho uma gravação com o Duarte Mendes, num estúdio em Campo de Ourique, em que lhe comento: “Estou a preparar-me para dar o salto”. E o gajo responde-me, “não vale a pena pirares-te, isto está tudo resolvido”. Ele já não se lembra disso, mas eu lembro-me perfeitamente. Eu achei aquilo um disparate completo, mas parece que ele estava metido no movimento dos capitães.
O Duarte Mendes é aquele que ganhou o Festival da Canção depois do 25 de Abril, na edição em que o “Alerta” do José Mário Branco ficou em segundo?
(Risos) Tinha feito um figurão o “Alerta”. Eu saio dos Sheiks em 67, faço os exames e vou para a universidade. E aí a vida começa a ser completamente ao contrário: começo a conviver com malta muito ligada ao movimento estudantil, integrei-me nesses movimentos, ali em Belas Artes, fizemos greves e outras coisas.
Como é que manteve ainda assim uma ligação à música?
Qualquer festa a que eu fosse, passavam-me a viola e pediam-me para cantar qualquer coisa. Mas houve uma altura que eu cortei mesmo. Já não queria nada de música e ser conhecido por isso, tinha ganho a consciência que vivíamos num regime muito mau. Mas o Pedro Osório, que estava em engenharia, foi lá a casa e veio-me propor participar no Festival da Canção, que eu achava que era uma cedência, porque era uma coisa muito reacionária, mas ele argumenta que é uma forma de conseguir fazer chegar ao grande público outras coisas e lutar por dentro. Lá me deu a volta e vou.
É com “O Verão”?
Sim, lá ganho e vou a Londres mas não participei como devia. Fui curtir em Londres, faltei a um jantar importantíssimo, o Carlos do Carmo nunca mais me perdoou isso, um jantar organizado pela BBC para o cantor português com o Cliff Richards. Eu andava na borga, fiz aquilo muito na curtição. Houve malta que me convidou para fazer um turnê pela Europa, mas eu não quis e voltei a estudar.
Mas volta a ir a um segundo Festival da Canção, onde obtém a melhor classificação de sempre de Portugal…
Mas aí, em 1973, já era diferente. Eu já tinha muita atividade na escola e estava no último ano. Eu estou sentado, como estamos aqui, e o pai da Ana Maria Lucas, que foi minha mulher, diz-me: “Está aqui um anúncio no jornal em que sicrano e beltrano pedem um cantor para participar”. E eram dois gajos que precisavam, um deles era o José Jorge Letria, e o outro era um tal José Niza, com um tal José Calvário. E eu, isto é verídico, fiz “Um Dó Li Tá” e calhou-me o José Niza. E voltei-me para o pai da Ana e disse-lhe o seguinte: “Vou ganhar, e por muitos e isso vai ser do caraças para nós”, porque a gente estava em princípio de vida e precisava de uns dinheiros. E telefonei para o Niza a dizer que estava interessado que contassem comigo. “É fantástico”, disse-me ele, “mas não quer ouvir a música?”. Estive para responder que não, mas depois achei que era arrogância a mais e lá fui. O Zé é um elemento aglutinador, é a pessoa que consegue trazer para a luta política, do ponto de vista musical, certos cantores do festival e as pessoas do chamado canto livre, os cantores revolucionários como o Zeca, o Adriano e essa malta. Tanto que eu faço uma enorme amizade com o Adriano a partir do Niza.
E há aquele célebre concerto no Coliseu antes do 25 de Abril de 74, que junta grande parte dessa malta.
Mas eu não estava cá. Acho que estava com o meu irmão Jaime na Suíça, se não estaria.
Havia a perceção dessa mudança? Quando se ouvia a “Tourada”, percebia-se que já havia um elemento de subversão contra o governo?
Eu pessoalmente não tenho essa consciência. Eu achava-a uma crítica à tourada, mas não fiz imediatamente essa leitura que depois se fez.
Não se achava que a “Desfolhada” da Simone era moralmente corrosiva para o regime?
Não tenho memória que fosse assim, lembro-me que havia malta da esquerda, que estava contra o regime, a utilizar a frase: “Quem faz um filho, fá-lo por gosto” no combate político.
Mas não há uma mudança de tom e de poema, coisas como os “Cavalos à Solta” do Ary dos Santos não mostram isso?
Era óbvio que eram grandes canções. Vê-se e sente-se a introdução dos grandes poetas na música. Mas a parte política aparecia mais de uma outra forma, sabia-se que havia cantores, poetas e compositores, como o Adriano, o Niza, o Ary dos Santos que eram ligados à esquerda. Essa malta, o José Mário Branco, o Zeca, o Sérgio Godinho, o José Jorge Letria eram malta do combate e eram rotulados politicamente como lutadores.
No seu caso não era rotulado?
Eu não era nada politicamente, só comecei a ser rotulado quando comecei a trabalhar com o José Niza e comecei a fazer canções com poemas do Alegre e a ter problemas com a censura. Há uma história que é muito pouco contada que é a minha ida em 1972 ao Festival da Eurovisão, quando o Adriano Correia de Oliveira é preso no avião. E eu ameaço que então não vou cantar. E aí muitas pessoas percebem que eu tenho uma posição política.
Mas acaba por cantar?
Sim, é o próprio Adriano que me diz, “vai cantar, pá. Eu garanto que estarei na plateia e até vou lá chegar primeiro do que tu, sempre que vou viajar eles fazem-me isto”. O que é certo é que quando eu cheguei a Londres ele já lá estava. O Adriano trabalhava na editora, e fez uma aposta com o dono da editora , que era o Arnaldo Trindade, e disse-lhe: “Sr. Arnaldo, este gajo vai ganhar isto tudo. E se ele ganhar, pague-me uma ida com ele”. E ele cumpriu a aposta. No avião está um staff enorme com gente da editora e os jornalistas, e a certa altura o avião não sai, e entra a polícia para sacar o Adriano. E o Adriano sai, e eu disse aos gajos: “Se ele não vem comigo eu não canto”. E toda a gente a tentar acalmar-me, o Dinis Abreu, o Carlos Cruz a dizer, “calma”. Mas eu nem medi bem o que dizia, porque nunca fui preso, nem quero ser preso, mas foi uma coisa espontânea. E ele à saída no avião nas escadas disse-me: “Não faças isso, vai cantar que eles fazem-me sempre isso quando eu vou viajar, eu vou lá ter”. E assim foi, e passamos uns tempos geniais em Edimburgo no Festival. Eu fiz uma amizade muito grande com ele. Mas aí já havia uma consciência política, reuníamos em casa do Niza e falávamos. Foi na altura que houve uma das primeiras greves aos exames, a malta ia lá e entregava aquilo em branco. Lembro-me de termos combinado isso, na mesa de um café, o João Paulo Bessa, a Maria João Simões e eu. Tempos depois o meu irmão Abílio é preso e o Pide diz-lhe: “Diga ao seu irmão que esteja sossegado ou a gente enche-lhe a cara de chapadas”. Quando ele me disse isso, eu fiquei à rasca, tinha lá uns “Avantes” em casa e comecei a queimá-los e ia incendiando a casa toda. A partir daí acabei com a música. Quando se deu 74, não sou eu que vou para a música, é um colega meu arquiteto que me diz: “Sai lá do estirador, a gente precisa é de gente na rua a cantar”. E eu como não tinha repertório estava à toa. No PREC se a gente começasse a cantar Manuel Alegre era uma bronca do caraças e uma assobiadela. O meu repertório esgotou-se no 25 de Abril. E uma amiga da Ana diz-me que há um gajo que é poeta e que trabalha num banco. Fui ter com ele e começamos a trabalhar. Era o Joaquim Pessoa.
Não se dava com o Ary?
Não me dava. Havia um impedimento. Eu estava casado com uma ex-namorada do Tordo, que chegou a estar para casar com ele. De modo que o Ary, muito amigo do Tordo, a detestava e ela não gostava dele. Só quando eu me separo da Ana é que faço uma grande amizade com o Fernando. Com o Paulo havia aquele episódio dos Sheiks, mas isso não impedia que fizéssemos coisas juntos.
Na altura havia uma grande entreajuda entre os músicos, eu lembro-me de ver a ficha técnica do “Fernandinho Vai ao Vinho” do Júlio Pereira e ver toda a gente a participar, desde os cantores ao Herman José, eram dezenas a ajudar como é que isso acontecia?
Era imediato. Alguém estava a fazer um disco e dizia, ‘preciso da vossa ajuda’, e lá íamos nós. Acho que isso se deixou de fazer, talvez se mantenha entra a malta mais jovem e a gente do rap, mas era assim.
Mas o PREC não vos dividiu?
Sim, apesar de continuarmos a colaborar entre nós, havia gente da “Cantar Abril” e os da “Era Nova”, esta última tinha o Zeca, o Zé Mário, o Fanhais e a outra onde eu estava era mais ligada ao PCP, eu, o Tordo, o Paulo, o Samuel, o Barata Moura e o Adriano estava no meio.
E o Niza nessa altura estava no PS.
E eles fizeram uma outra coisa que eu não me lembro o nome. Mas depois, quando as coisas são suportadas por partidos, e o partido se chateia e tira o tapete, a coisa acaba. A Cantar Abril vivia essencialmente dos contactos que o partido fazia para a malta cantar, e pagava. Embora depois começassem a aparecer umas coisas mais chatas, isto aconteceu comigo, eu estar a cantar perante centenas de pessoas e depois chegar para receber, e ao meu lado estava uma outra artista que não era do PC a receber balúrdios e eu a receber tostões. Aquilo começou a chatear-me: “Então ela está a receber uma data de dinheiro e eu isto?”, e o tipo a responder-me, “camarada, sabes como é que é”. Entretanto montamos uma editora: eu, o Tordo, o Vilas Boas, o Joaquim Pessoa e o Eduardo Mendonça, era a “Toma lá Disco”, mas era uma coisa também muito apoiada pelo partido, e depois a certa altura começamos a fazer contas, e recebia-se muito pouco. Há uma coisa que é incrível, é que eu faço dois sucessos: “A Amélia” e o “Alcácer”, e o Joaquim Pessoa todo entusiasmado diz-me: “Estamos ricos”. Mas como não se pagaram direitos de autor, até há dez anos eu não tinha recebido nada da “Amélia”. O que vale é que eu funcionava com um pé na música e outro na arquitetura.
Chegou a fazer várias coisas, um hotel salvo erro?
Sim, na Falésia, mas também fiz um Hospital. Quando se dá o 25 de Abril eu trabalhava na empresa do filho do Marcelo Caetano e ele pirou-se e aquilo foi tudo por aí abaixo. No tempo do Vasco Gonçalves fez-se umas equipas para fazer hospitais: a ideia era a função pública fazer hospitais em vez de os entregar aos privados, que levavam balúrdios. Foram contratadas equipas, uma para fazer o Garcia da Orta e outra para fazer o Hospital de Guimarães. Eu fiquei com o Celestino Castro e fizemos o Hospital de Guimarães, tenho um terço daquele hospital: foram oito anos de trabalho naquele projeto.
A certa altura teve que optar?
Eu estava no atelier e passavam dois colegas e diziam-me: “Hoje à noite vem à Gulbenkian o Sterling não sei quê que fez aquele projeto, aparece”, e eu quando chegava a casa, havia um gajo que me telefonava e dizia: “Há uma coisa no Hot Club do caraças”, e eu pensava cá para mim, “estou-me nas tintas para o Sterling” e lá aparecia no Hot Club. Quando há o convite do Joaquim Pessoa para começar a fazer canções mais a sério foi quase o pontapé de saída.
E não se arrepende de ter deixado de fazer arquitetura?
Quando fui pedir a minha reforma, a senhora olhou para mim e disse: “Você tem aqui uma parte em que era arquiteto e descontava, outra que era empresário individual e também fez alguns descontos, mas você vai receber uma miséria, agora se você tivesse ficado arquiteto receberia…”, e eu berrei-lhe, “não me faça essas contas por favor”. Em termos monetários eu podia dizer que estou arrependidíssimo, a minha vida não é fácil, tenho de estar sempre em atividade, mas foi o que eu escolhi.
Depois tem aquela fase do “Triângulo do Mar”
É verdade, baseia-se numa conversa. Vê lá tu que tive num avião que vinha de Frankfurt com o Zeca. Eu estive ali um bocadinho a falar com ele, e ele falava muito daquilo que era um triângulo histórico e cultural entre nós, África e Brasil. No fundo eram os alicerces da lusofonia, e eu achei aquilo muito interessante. Desde miúdo gostava muito da música brasileira, por causa da família que lá vivia, e comecei seriamente a pensar nisso. Falei com o meu irmão Abílio que me disse que havia uma série de escritores de África a fazer um conjunto de coisas muito interessantes. E avancei com esse projeto chamado “Triângulo do Mar”, que era uma coisa meio africana, meio fadista, meio nordestina e brasileira e foi um princípio. Eu ouvia mais música nordestina, que tinha mais ligação e continuidade com a chula e o malhão e o resto da música portuguesa.
Mas isso não durou muito tempo, a certa altura passa sobretudo a fazer música para cinema e teatro, e depois surge a ópera?
A ópera é uma ligação que tenho desde miúdo, eu ia muito com os meus pais. Achava aquilo uma coisa deliciosa. Como o meu pai era médico de um tipo que era um grande clarinetista, às vezes quando eram óperas que eram para cima dos 12 anos, eu não podia ir, e o gajo metia-me, com o meu irmão Jaime, no fosso da orquestra. Dizia para a gente não se mexer e a gente lá ficava. Era impressionante ver 80 gajos a tocar, com outros gajos aos berros lá em cima, e eu a pensar: “É isto que eu quero ser”. Quando eu começo, muito mais tarde, a Cristina Castro, que foi uma pessoa que cantou com a Callas, ela diz-me: “finaaaaaaaalmeeente Carlos que alegria”, ela tinha uma voz muito fininha. Porque ela lembra-se que eu em miúdo queria ser cantor de ópera. Mas se um gajo ser cantor de música ligeira já é o que é, de ópera então não cantas para ninguém, cantas para os pombos e os gatos e eles piram-se. Eu estudei piano, guitarra, saxofone e violoncelo, o instrumento que eu estudei mesmo a sério foi piano, mas dei por mim a pensar, “estudei estes instrumentos todos, mas ando a cantar e não sei o que ando a fazer”.
Não lhe deu como o Rão Kiao de ir para a Índia?
(Risos). Não deu mas quase, ainda estive para ir para o Nordeste brasileiro. Tive uns vaipes mas passou-me. Tinha que estudar voz. E comecei a estudar a partir do início dos anos 90, primeiro com a Cristina Castro e depois com uma cantora romena que veio cá fazer “A Tosca”. Ela gostou muito da voz e ensinou-me, e ainda fizemos concertos em vários conventos e eu achava aquilo uma delícia.
E agora o que faz?
Continuo a fazer concertos.
Mas discos já não se vendem, só na internet
Agora por acaso estou a fazer um disco, não sei como o querem divulgar. Fiz uma série de concertos pelo país. Depois no verão tenho poucas coisas. E estou a gravar um disco de êxitos antigos, uma espécie de best of, mas agora não sei qual é o suporte em que eles querem divulgar o trabalho. Concertos estou sempre a fazer, se não o fizesse estava aflito. Entretanto tive muitos alunos de canto, até porque estive em Espanha a estudar, mas com a crise começaram a desaparecer, e depois eu saí de Santarém onde estavam a maior parte dos alunos e vim para Lisboa, agora tenho três alunos.
Todos os seus filhos têm que ver com a música?
Sim, exceto o Chico, o mais velho, que já teve, mas entretanto está no outro lado na produção de uma coisa muito engraçada. O Miguel compõe eletrónica para bailado e performances e está no Maria Matos na parte do som, e o mais novo está no jazz e no reggae. Vai gravando e vai cantando. Nos espetáculos que eu faço ele participa, faz uma ou duas intervenções. O país está uma coisa estranha para a malta das artes, há cada vez mais dificuldades. Dá a sensação de se ter voltado aos anos 60 em que a gente alugava as salas, fazia os bilhetes e tinha um amigo a vender os bilhetes. E depois levava o dinheirinho num saco a dizer: “Esta noite fizemos ainda para uma sandes”.
Acho que vou começar a entrevista falando do momento em que começou, com o Que se Lixe a Troika , a cantar a Grândola Vila Morena no parlamento, em que era suposto o sinal do arranque ser a terceira intervenção de Passos Coelho e o Bruno Carvalho e eu dávamos-te o sinal com o cotovelo, mas tu como profissional resolveste começar a aquecer a voz antes, connosco em pânico completo (risos)
(Risos) Era para se ouvir. Eu sabia que aquilo que tinha de ter uma tonalidade certa senão não se ouvia, por isso estava eu a fazer “hmmmm,hmmmmm”, mas de facto um bocadinho alto. Mas deu resultado foi uma ação que circulou pelo mundo inteiro. Eu tive mais entrevistas nessa altura que em muitos anos de carreira. Não te contei uma história fabulosa, fui contactado pela TV Globo: “Andamos à sua procura, por ter sido aquele que teve a ideia de cantar a Grândola no parlamento”, e eu disse, “não, fomos muitos”. “Mas queríamos falar com você”, disseram eles. Lá fomos para as escadas da Assembleia da República, eu conto na entrevista a história do que se passou e o que é “O Que se Lixe a Troika”, e no fim o jornalista, “não se importa de cantar a Grândola?”, “em minha casa”, pergunto-lhe. “Não, aqui”. Então colocam-me naquele triângulo à frente do parlamento, mas como começou a chover, o câmara filmou a partir da paragem de autocarro, e eu fiquei sozinho a cantar a Grândola, parecia um doido. Havia carros a apitar a dizer: “estás maluco, pá”. Foi a cena mais delirante que me aconteceu. Ganhas a consciência que pareces o gajo que andava a dizer adeus aos carros.